Enquanto visitava policiais feridos na UTI, presidente descumpriu normas, causou tumulto e foi alvo de protestos
por João Pedro Barreto
Bolsonaro foi ao HC visitar dois policiais baleados no domingo da eleição enquanto faziam a segurança de uma zona eleitoral. O crime não teve motivação política, segundo o TSE. Foto: Arquivo Caoc
Dois dias após o primeiro turno das eleições presidenciais e a definição da disputa do segundo turno entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Messias Bolsonaro (PL), o candidato à reeleição incluiu em sua agenda oficial uma visita ao Hospital das Clínicas de São Paulo, o maior complexo hospitalar da América Latina e que é ligado à USP. Por volta das 21h30 da terça-feira dia 4 de outubro, Jair Bolsonaro chegou ao HCFMUSP para visitar dois policiais militares na unidade de tratamento intensivo (UTI) feridos em confronto no domingo (02), dia da eleição. O presidente foi recebido por críticos do governo, que protestavam na entrada principal do hospital, e apoiadores que o acompanharam durante o evento.
Entre os críticos do presidente, estavam presentes membros do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, da Faculdade de Medicina da USP, que ficaram cerca de quatro horas em frente ao hospital à espera de Jair Bolsonaro. “A gente, como centro acadêmico, ficou sabendo que o presidente iria vir no próprio dia da visita dele, na terça-feira, por volta das 15h, 16h. Nós fomos informados por meio dos internos que estavam no hospital, que ficaram sabendo por boatos nos corredores, e prontamente nos mobilizamos para mostrar a presença do centro acadêmico, a indignação dos alunos da Faculdade de Medicina e fazer o questionamento que a gente gritou quando ele passou em frente: ‘Por que não veio durante a pandemia?’”, contou Arthur Lessa, aluno da Faculdade de Medicina da USP e membro do Caoc.
Alunos da FMUSP e funcionários do HC protestam contra o presidente e sua gestão da pandemia enquanto o esperam no hospital. O HC foi um dos maiores covidários do país durante o período. Foto: Arquivo Caoc
Entretanto, os manifestantes contrários ao governo nem chegaram a se encontrar diretamente com o presidente. Bolsonaro não utilizou a entrada principal e teve acesso às instalações do hospital pelo Prédio dos Ambulatórios do HC (PAMB), que já estava fechado naquele momento, mas que foi aberto para sua passagem. “Foi organizado pela equipe dele um certo teatro de que ele entraria pelo Instituto Central. Ele mobilizou toda a equipe de segurança dele para segurar os manifestantes que estavam ali, fez a passagem dos carros pela região, seguiu reto e foi até o PAMB. Ele realmente ficou com medo de entrar por ali, porque sabia que sairiam vídeos dele sendo criticado”, comentou Vinicius Humberto, também aluno da FMUSP e membro do Caoc.
Depois de entrar no hospital, Jair Bolsonaro foi, praticamente, acompanhado apenas de apoiadores que o cercaram durante o trajeto, gravaram vídeos e gritaram palavras de ordem. A grande maioria dos manifestantes que protestavam contra o presidente do lado de fora do hospital não entrou depois de sua passagem.
Por volta das 10 horas da noite, Jair Bolsonaro se dirigiu à UTI, cumprimentou policiais militares e correligionários e causou grande tumulto no ambiente hospitalar ao passar por grupos de funcionários que o apoiavam. Além disso, circulou sem máscara durante alguns momentos após ser encorajado a retirar o equipamento de proteção por funcionários do HC, dos quais alguns também não usavam máscaras. Veja abaixo vídeos do presidente da república causando tumulto dentro do hospital e retirando sua máscara durante a visita.
O uso de máscaras em ambientes de prestação de serviços de saúde, como hospitais, ainda é obrigatório no estado de São Paulo. A visita de Bolsonaro gerou diversas publicações nas redes sociais de críticos e apoiadores, entre eles o seu filho Eduardo Bolsonaro, que vangloriou o ato do pai.
Carta aberta ao HCFMUSP
Uma semana após a ida de Bolsonaro ao Hospital das Clínicas, as manifestações contrárias à visita tiveram um novo capítulo. Cientes das diversas controvérsias que envolveram o evento, o Centro Acadêmico Oswaldo Cruz publicou em suas redes uma carta aberta à diretoria do HCFMUSP com diversos questionamentos relacionados à conturbada passagem de Bolsonaro pela instituição. “Muitos alunos de medicina e outros que também não fazem parte da faculdade, mas que estavam na manifestação, ficaram indignados com o comportamento do presidente dentro do hospital”, explicou Arthur sobre a publicação da carta. “A ideia era mostrar para a diretoria que nós estávamos preocupados com isso e que não passou batido. Queríamos que ficasse registrado que eles não poderiam simplesmente permitir que isso acontecesse e ninguém ia falar nada”, completou Vinicius.
O documento levantou quatro principais questionamentos que envolviam os protocolos de visitas no Hospital das Clínicas. São eles: o tumulto gerado durante a passagem de Bolsonaro; a não apresentação do comprovante de vacinação contra covid; o horário não convencional da visita à pacientes na UTI; e o não uso de máscaras no hospital estimulado por funcionários do HC.
É inevitável que a visita de Jair Bolsonaro a qualquer ambiente gere algum tipo de tumulto. Um presidente que gera paixões de apoiadores e críticos não conseguiria visitar um hospital dois dias após o primeiro turno das eleições de maneira discreta e silenciosa, que seria a maneira mais adequada por se tratar de uma instituição de saúde. “Gerou um grande tumulto no hospital. Ficou evidente pelos vídeos. Não só pelas pessoas que estavam a favor, mas pelas pessoas que estavam contra. Isso gerou todo um burburinho no hospital”, explicou Vinicius. “Sem falar que foi às 22h e atrapalhou todo o descanso de uma grande parcela de pacientes que não tinham nenhuma relação com o ocorrido”, completou Arthur.
Outra questão levantada pelo centro acadêmico foi sobre o status vacinal do presidente. O seu comprovante de vacinação contra covid está sob sigilo de cem anos imposto pelo Palácio do Planalto e, por isso, não deve ter sido cobrado para a visita. Além disso, os estudantes apontam uma contradição com o fato da USP, ao mesmo tempo, exigir o comprovante de alunos e funcionários. “Se na Universidade de São Paulo, a gente não pode nem assistir aula sem vacina, como a gente permite uma visita na UTI de um hospital terciário sem uma comprovação de vacina. Isso é muito complicado e acaba sendo muito contraditório da própria USP. Cobra tanto dos alunos, mas das figuras públicas que frequentam seus espaços, isso não é cobrado”, afirma Vinicius.
Para o centro acadêmico, o horário da visita de Bolsonaro não foi um problema apenas por conta do descanso dos pacientes, mas também porque este não é um horário convencional de visitas à UTI e não é concedido ao público geral. “Muitas pessoas não conseguem ter acesso aos seus entes queridos durante a internação nas UTIs, porque o horário de visita é muito restrito. Por trabalharem durante o dia ou morarem muito longe, elas não conseguem adaptar suas rotinas para fazer a visita e por isso ficam sem ter esse contato”, esclareceu Arthur.
Além disso, a questão mais delicada da carta é sobre o não uso da máscara em ambiente hospitalar por parte do presidente da república. Como é possível ver no vídeo acima, Jair Bolsonaro entra no hospital de máscara, mas pergunta a funcionários que o apoiam se poderia retirá-la. Prontamente, é autorizado, mesmo que isso vá contra as normas do hospital e de qualquer instituição de saúde do estado de São Paulo. “A gente escreveu aquela carta querendo saber como isso aconteceu e se o hospital pretendia fazer alguma coisa com esses funcionários. Porque o HC é uma vitrine, é o principal hospital da América Latina. Quando sai a informação que os funcionários deste hospital tem esse tipo de comportamento, é isso que a gente quer espalhar para o Brasil e para o mundo?”, questiona Arthur.
“Ele ter ficado sem máscara expôs todos os funcionários e pacientes que estavam na UTI, que estavam ali com o intuito de se tratar, de passar pelo seu atendimento, de estarem em segurança dentro do hospital. Vai completamente contra o objetivo inicial do hospital que é zelar pela vida e promover a saúde”, complementou o aluno de medicina.
Procurado pela reportagem do Jornal do Campus, o Hospital das Clínicas enviou o seguinte pronunciamento: “O HCFMUSP informa que o protocolo de visita de chefe de Estado foi estabelecido pela equipe cerimonial da Presidência da República e que toda a comitiva foi devidamente orientada a usar máscara e higienizar as mãos com álcool em gel dentro das áreas assistenciais do Instituto Central”.
Um posicionamento muito semelhante foi enviado de forma privada ao Centro Acadêmico Oswaldo Cruz em resposta à carta aberta. Questionamentos feitos pelo Jornal do Campus sobre os funcionários que autorizaram que o presidente retirasse a máscara, sobre como é a fiscalização da obrigatoriedade do uso de máscaras no hospital, sobre a necessidade do comprovante de vacina contra covid para circular no HC e sobre a autorização para a visita ser feita no horário em que aconteceu não foram respondidos pelo Hospital das Clínicas.