Alguns significados que podemos achar no esporte mais famoso do mundo
por Renato Brocchi
Foto: Mariana Carneiro/JC
Dizem que os soldados jogaram futebol no Natal de 1914.
Foi durante a trégua extraoficial de dezembro. Soldados alemães, franceses e britânicos que lutavam a Grande Guerra na Bélgica calaram as metralhadoras, pularam para fora das trincheiras e trocaram palavras, víveres e souvenires na terra-de-ninguém outrora bombardeada. Então, dizem, jogaram bola.
A bem da verdade, não se sabe ao certo se a bola rolou pelo fronte ocidental naquele Natal, muito menos se as partidas atravessaram as fronteiras bélicas e opuseram soldados da Tríplice Entente aos da Central. Mas a imagem não deixa de cativar: a guerra resolvida numa pacífica partida do esporte bretão.
É uma metáfora com ida e volta: se a batalha vira jogo, o ludopédio vira guerra. Marrocos venceu Espanha e Portugal em sequência nesta Copa. Um pouco a sério, um pouco pela troça, houve quem lembrasse da tomada da Península Ibérica pelo califado Omíada no século VIII. O embate entre marroquinos e franceses nas semifinais seria então reedição da batalha de Tours de 732. Baita carga para uma bola sendo chutada de um lado a outro.
Mas por que insistimos em ver mais do que uma partida nesse esporte? E o que uma metáfora como essa pode realmente nos dizer?
Penso que parte da razão tenha a ver com o jogo em si. Algumas coisas podem passar despercebidas a quem já se acostumou às regras e ao vocabulário futebolísticos, mas esse esporte inegavelmente tem um quê de belicosidade — mais do que o golfe, ao menos. Não é todo dia que as pessoas se dividem em posições de ataque e defesa, nem é sempre que discutem as melhores estratégias para se avançar “no campo adversário”. Fora os pênaltis — alguém mais vê uma reencenação de um esquadrão de fuzilamento ali? Talvez a metáfora só exista por isso mesmo: é irresistível.
Há ainda algum pensamento mágico nisso tudo. É como se víssemos nas refregas em campo uma encenação ritualística e miniaturizada — uma metonímia, enfim — de conflitos e resoluções reais. Que outro motivo a gente teria para se importar com um — digamos — Estados Unidos e Irã, se alguma parte de nós, mesmo ínfima, não acreditasse plenamente que haveria uma espécie de justiça cósmica a agir durante o jogo? Se não acreditássemos que algumas contendas pudessem ser resolvidas vicariamente no gramado? Mesmo soando pueril, acho que esse é um dos grandes atrativos da copa: a gente esquece de propósito que os times em campo são só seleções, não seus países. Donde nossa tendência em lembrar, por exemplo, da ibéria muçulmana. Transubstanciação ludopédica. É um salto cognitivo e tanto, mas acontece.
Bandeirolas comemorativas na ECA-USP. Foto: Mariana Carneiro/JC
Se a metáfora vem da nossa cabeça, se insistimos em ver numa partida de futebol algum significado que não está lá, qual é mesmo a importância de tudo isso? Quase nenhuma, se nos mantivermos presos ao campo. Mas a história se intromete sub-repticiamente. Tomemos as copas de 1934 e 1978. Duas competições que, como as Olimpíadas de 1936 na Alemanha, promoveram as ditaduras dos países sede — Itália e Argentina, nessa ordem. Se os embates no campo não trazem necessariamente algum conhecimento histórico, as contextualizações e ligações que podemos trazer a partir deles o fazem. Ao menos, dão uma boa aula: nos fazem entender um pouco mais de propaganda política. A ironia do logo da copa de 1978, por exemplo — os braços de Perón, representados pelas curvas azuis, saudando os argentinos durante a ditadura militar que lhe havia apeado o partido do poder. Material didático, no mínimo.
Ou, quem sabe, alguns jogos realmente significam algo a mais. Se bobear, a artilharia bretã realmente jogou uma partida amigável — o mais sincero amistoso — com a infantaria teutônica naquele Natal de 1914. Talvez a guerra tenha sido decidida ali. E, depois de uma boa partida, tenha sido declarada a futilidade de todas as guerras. Só quem não jogou não percebeu.