Casos de assédio na USP expõem fragilidade da universidade no combate à condutas abusivas

O ambiente na Cidade Universitária ainda é repleto de insegurança, sobretudo para mulheres

por Dani Alvarenga e João Dall’ara

Casos de assédio na USP voltaram a crescer após fim da pandemia. Foto: Rian Damasceno/JC

Situações de assédio na universidade deixam marcas profundas nas vítimas, que passam a enxergar o local como um ambiente inseguro e nocivo. Conforme apurou o JC, os principais empecilhos para combater o assédio moral e sexual na USP estão relacionados à dificuldade em fazer denúncias contra os assediadores, seja pela falta de acesso aos canais corretos seja pela impunidade e temor da retaliação. Como é o caso de Roberta*, que conta ter sido ameaçada de não conseguir progredir na carreira enquanto o outro estivesse no departamento e, apesar de ter comunicado à direção do instituto sobre o caso, nada foi feito. “A pessoa assedia há mais de 20 anos e nada acontece”, relata.

Com a pandemia, as denúncias caíram, como relata Heloísa Buarque de Almeida, Professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e criadora do Rede Não Cala – Rede de Professoras pelo fim da violência sexual e de Gênero na USP. “Em contrapartida, com a volta às aulas, voltamos a ver um crescimento das denúncias de assédio, tanto na Rede Não Cala quanto no Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da USP)”, explica Almeida. 

A impressão da professora se confirma através de dados da Ouvidoria da USP. Antes da pandemia, em 2019, o órgão coletou seis denúncias de assédio ou violência sexual. Em 2020, os números caíram para quatro e, no ano seguinte, para três. Com o retorno das aulas presenciais em 2022, a Ouvidoria registrou cinco casos. Contudo, as taxas aumentaram neste ano: apenas no primeiro semestre de 2023, já foram realizadas seis denúncias formais.

A ascensão do debate nos últimos anos fez com que a USP se mobilizasse e passasse a adotar algumas medidas para coibir os casos de assédio. A criação da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), em maio de 2022, é parte do processo. Apesar de haver o Escritório USP Mulheres, as Ouvidorias e as comissões de Direitos Humanos em algumas unidades, ainda parece ser insuficiente. 

A necessidade de medidas mais efetivas foi tema de debate em seminário no início do ano pela PRIP. Como meio de pressionar e trazer ideias para o combate efetivo do assédio, a Associação de Docentes da USP (Adusp), em conjunto com o Sintusp, DCE-Livre (Diretório Central Estudantil) e Rede Não Cala, entregou a carta “Vozes Que Não Se Calam Contra o Assédio”. 

“A administração universitária sequer considerou a proposta e seguimos sem que os casos sejam devidamente encaminhados. Embora a Reitoria tenha criado a PRIP, ainda não vimos uma política institucional de combate ao assédio”, explica a professora Michele Schultz, presidenta da Adusp. Procurada sobre o recebimento da carta e a proposta de novas ações, a PRIP disse: “A Universidade já tem medidas de enfrentamento ao assédio e violência de gênero. No horizonte estão palestras e campanhas educativas contra o assédio, que pretendemos fazer no próximo período”. 

Existe ainda a mobilização pelas pessoas que frequentam a universidade, seja por meio de coletivos seja por Comissões Anti-Opressão (CAO) organizadas pelos estudantes. Não há uma entidade ou associação voltada especificamente para esse tipo de conduta abusiva na USPa, o que dificulta as denúncias e o acolhimento necessários para as vítimas, além da falta de procedimentos de fácil acesso e devidamente organizados. “Nós precisamos ter uma mudança regimental, na estrutura da universidade.A Rede Não Cala é um movimento social e coletivo feminista, não um órgão da universidade”. 

A hierarquia rígida do ambiente acadêmico, para a presidenta da Adusp, agrava a situação ao beneficiar assediadores em posições mais elevadas. “Os recorrentes casos de assédio na USP estão relacionados, em grande medida, à cultura oligárquica e antidemocrática existente na instituição, mantida por suas estruturas de poder”. Desse modo, as situações de condutas abusivas se configuram de diversas formas e isso fica evidente pelo relato das vítimas.

“Acessei a biblioteca da Química como aluna de pós-graduação e, em certo momento, o professor se aproximou pelas minhas costas e eu fiquei ‘encurralada’ entre ele e a estante”, contou Mariana*. Outra vítima relatou ter sido assediada três vezes durante a graduação e a pós-graduação. “A própria guarda universitária passa encarando as alunas pelas ruas da USP. Falta uma política de educação coletiva, sem distinções de cargos, e punição para os poderosos que assediam mulheres em posições hierárquicas inferiores”, relata a jovem. 

Michele Schultz, presidenta da Adusp, reconhece que a universidade ainda está muito longe de ser um local seguro em relação a assédios. “Não possui bons mecanismos, diria até que inexistem.”, explica Schultz. 

Procurada sobre a falta de um canal institucional voltado para o combate ao assédio, a PRIP afirmou: “A USP tem, desde  2020, dois documentos que organizam um protocolo para atendimento de casos de violência de gênero. Duas instâncias são recomendadas: a primeira, de acolhimento, é realizada no âmbito das unidades, e a segunda de apuração de responsabilidade no âmbito da universidade”. Contudo, para a presidenta da Adusp, a falta de um protocolo unificado dificulta o processo de denúncias e punições, além da falta de garantia de que as investigações serão levadas a sério e adiante.

* Nomes fictícios para proteger a identidade das vítimas