Para quem funciona o Hospital Universitário?

[Foto: Thais Morimoto]

Diminuição de leitos, funcionários e atendimentos marcam os últimos 10 anos. Instituição fala em “recuperação gradativa”

Por Ana Mércia Brandão E Gabriel Eid

Nos últimos anos, diversas reportagens do JC denunciaram uma situação de crise crescente no Hospital Universitário (HU), unidade fundamental para a comunidade USP e para os moradores da zona oeste de São Paulo. No ano de 2023, os problemas se intensificaram. Em fevereiro, o centro cirúrgico ficou sem energia elétrica em pleno verão, o que fez com que as temperaturas beirassem os 30°C no local. O número de leitos, que já chegou a ser de 233, hoje é de 145, após bater no pior nível da série histórica (127) em 2019. A instituição admite falhas, mas diz que casos críticos estão sob controle.

Rosane Meire, diretora do Sintusp e funcionária do HU desde 1989, afirma que a unidade sempre passou por problemas, mas diz que a situação ficou pior a partir da gestão de  Marco Antônio Zago na Reitoria da USP, entre 2014 e 2017. O órgão é responsável pela administração direta do hospital. Em 2014, um Programa de Incentivo à Demissão Voluntária foi aprovado pelo Conselho Universitário. A iniciativa foi contestada por alunos, funcionários e docentes durante a greve geral que ocorreu naquele mesmo ano. 

Segundo os Anuários Estatísticos da USP, o HU perdeu 495 funcionários entre 2013 e 2019. No mesmo período, as internações no hospital caíram mais de 70%: de 1472 para 421 ao ano. Para a diretora do Sintusp, um dos principais problemas do HU é a falta de funcionários. Os remanescentes, após as demissões voluntárias, ficaram sobrecarregados com os atendimentos.

Procurado, o HU, por meio de seu Centro de Comunicação (CCOM) confirmou o problema, classificando-o como “uma dificuldade que a USP vem enfrentando há várias gestões e que não é específica do HU”. Mas afirma que a “recuperação gradativa dos quadros do Hospital é tratada como prioridade”, uma vez que “em 2022, foram abertas 400 vagas de técnicos administrativos, sendo 120 destinadas ao HU”.

A situação hoje

Rosane ressalta que, enquanto o número de funcionários diminui, a quantidade de pessoas que necessitam usar o HU aumenta. Como exemplo, ela cita o aumento da comunidade USP. Segundo o Anuário Estatístico da USP, entre 2001 e 2021, o número de alunos da graduação foi de 40.162 para 60.817.

Outro grupo de usuários do HU é composto pelos moradores do Jardim São Remo, comunidade localizada ao lado da Cidade Universitária, exatamente na entrada da unidade de saúde. “O hospital foi criado na intenção do ensino e da pesquisa, mas acabou se tornando uma necessidade da região oeste, por ser o único hospital secundário”, explica Rosane.

A eles, só é permitido recorrer ao HU em caso de urgência e, mesmo assim, é necessário que antes passem por uma unidade de saúde primária e sejam encaminhados ao hospital. Isso porque, desde 2015, a USP limita quem pode usar o HU. A resolução 7043/2015 determina que “terão direito à utilização dos Serviços Médicos e Odontológicos próprios da Universidade de São Paulo os servidores técnicos e administrativos, os docentes, os alunos matriculados em cursos de graduação e pós-graduação e os dependentes dessas categorias.”

Agendamento: como e para quem

Àqueles que têm direito de usar o serviço de saúde, segundo às normas, e desejam marcar consultas ou exames, o acesso exige o cumprimento de algumas etapas. De antemão, todos devem possuir um “cadastro HU” para conseguir fazer o agendamento.

Ele é feito apenas presencialmente, no SAME (Serviço de Arquivo Médico e Estatística) do Hospital, de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, mediante a apresentação de Cartão USP, RG, CPF e Cartão Nacional de Saúde. A exceção fica por conta dos alunos, que podem solicitar a chamada “matrícula HU” através de um formulário que, segundo o site do Hospital, tem prazo de resposta de 10 dias úteis.

Feito este cadastro, os usuários estão aptos a marcar consultas e exames, com um porém: o agendamento é feito apenas online, a partir de um formulário no site do Hospital. Lá, constam somente as especialidades disponíveis. Algumas das ofertadas no HU nem chegam a aparecer na plataforma, por não terem perspectiva de vagas para atendimento.

Júlia Monteiro, estudante de Letras na FFLCH e usuária do HU, afirma que o sistema torna a marcação de consultas “uma dificuldade tremenda”. “Em vez do online ser uma coisa para ajudar, ele atrapalha. A disponibilidade é péssima”, resume.

Frequentadora do Hospital desde 2022, por não ter plano de saúde e pela possibilidade de se consultar em especialidades indisponíveis em unidades de saúde perto da sua casa, ela conta que tenta desde abril marcar uma consulta com um ortopedista. Júlia já havia conseguido marcar uma vez, mas, com suspeita de Covid-19, não conseguiu comparecer ao Hospital e teve seus apelos por uma remarcação ignorados. “Liguei no hospital e eles  disseram que não podia remarcar porque, segundo eles, a suspeita é diferente do caso confirmado. Eu não fui, perdi a consulta e até hoje não consegui atendimento.”

Ela também se consulta com um psiquiatra no HU uma vez por mês, após esperar dois meses para conseguir uma vaga. Na última consulta, Júlia se surpreendeu ao ver que, segundo ela, o sistema não havia registrado sua reserva. Numa tentativa de resolver a situação, a equipe do hospital trocou o médico da consulta, e a estudante teve que abandonar o tratamento com o profissional que a acompanhava há meses.

“Isso não é qualquer coisa, sabe? Eu preciso ir lá para renovar a receita do meu remédio, para me acompanhar. É literalmente questão de vida ou morte”, afirma.

A Psiquiatria reúne outros problemas. Giovanna Rangel, estudante de Administração na FEA, aguarda há três meses uma disponibilidade de consulta com o médico da área. Sempre que entra no site, a especialidade nem mesmo é exibida.

No entanto, para ela, o bônus compensa o ônus. A estudante já utilizou o HU para fazer várias consultas preventivas, as quais, afirma, não teria feito sem a existência do Hospital. Mas foram dois anos de graduação até que ela soubesse que poderia utilizar a unidade de saúde.

“É curioso porque meus amigos da USP também não sabem. Eu falo que marquei e fui no HU, e ninguém sabe que isso é uma possibilidade. Não é amplamente divulgado”, relata.

Assim como Júlia, Giovanna reclama do site. “Não é muito intuitivo. Eu tenho facilidade com internet, mas uma pessoa que não é muito digital vai sofrer para entender como funciona. Se fosse mais fácil, mais pessoas marcariam”, avalia.

Atendimento no hospital prioriza urgências e emergências

Ensino e atendimento

Um Hospital Universitário precisa contemplar as funções que dizem respeito à universidade – como ensino e pesquisa – e ao atendimento hospitalar. É o que explica a professora Marília Louvison, do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP. 

De acordo com a docente, existe uma ampla discussão sobre qual seria a melhor forma de equilibrar esses dois lados, não só no HU da USP, mas em diversos outros hospitais universitários no Brasil. Outro conflito, segundo ela, é se o hospital deveria ser “porta aberta” – ou seja, oferecendo pronto-atendimento a toda a população da região – ou restrito aos servidores e estudantes da universidade. 

Marília  afirma que o SUS pressupõe atendimento a todos, não só a um grupo específico. No entanto, ela diz ser necessário realizar um amplo estudo para avaliar as condições de estrutura do hospital e mapear as outras unidades que podem oferecer atendimento à população da zona oeste, tais como Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs) e Unidades Básicas de Saúde (UBSs). “Uma porta aberta pressupõe existirem condições para se atender a todos que o hospital recebe”, explica.

Perguntada sobre a possibilidade de o Hospital atender mais pessoas externas à comunidade USP, a CCOM afirmou: “O HU tem como missão o atendimento para a comunidade USP e à população em geral, por meio do sistema de regulação do Sistema Único de Saúde. As consultas de especialidades são ofertadas para o SUS, em torno de 350 por mês, e os pacientes, incluindo as pessoas da comunidade São Remo, são encaminhados para o HU mediante agendamento realizado utilizando o Sistema Informatizado de Regulação do Estado de São Paulo (SIRESP)”.

O órgão também afirma que o pronto-socorro do Hospital atende apenas casos de urgência e emergência e que os casos que forem avaliados pelo protocolo de triagem como não sendo de urgência são encaminhados para a rede de assistência à saúde do SUS.

Verbas e reforma

Em junho de 2022, a Reitoria da USP destinou R$ 217 milhões para reformas no Hospital das Clínicas de São Paulo e no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (HCRP). Ambos são administrados por duas fundações de direito privado, a Fundação Faculdade de Medicina (FFM) e a Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Assistência do HCRP (FAEPA). Enquanto isso, o orçamento geral do HU, único hospital que ainda está sob administração direta da Reitoria, é de cerca de R$ 301 milhões. 

De acordo com a diretora do Sintusp, em 2013, foi anunciada uma reforma para modernização do HU, mas a obra acabou não ocorrendo. O órgão cita a precariedade das instalações elétricas e hidráulicas como os principais problemas de infraestrutura do Hospital.

Júlia vai na mesma linha. “É impossível fazer um atendimento adequado, se os funcionários estão totalmente sobrecarregados. Se as pessoas estão sendo mal pagas e trabalham num lugar em que, literalmente, o teto pode cair na sua cabeça a qualquer momento, não vai ser maravilhoso”, resume.

Em resposta, o CCOM afirma que “as situações críticas estão controladas”. Diz ainda que o Hospital passa por “um grande processo de reforma para adequação à legislação atual de segurança contra incêndio” e que “está sendo elaborado um projeto de reforma para modernização das instalações, começando pelas áreas críticas de Pronto Socorro e UTIs”.