“Sem a Libras, sem a língua de sinais, eu não existo”

Após quase 90 anos de fundação da USP, a universidade abre as portas pela primeira vez a uma professora surda, Sylvia Lia

Por Danilo Queiroz e Sofia Lanza

Na língua portuguesa, as três imagens significam: “Eu sou Libras” – Foto: Laura Pereira Lima/JC

“Eu sou uma mulher, surda, ativista, que gosta de reivindicar e brigar pelos meus direitos”. É assim que se apresenta Sylvia Lia Grespan Neves, primeira professora surda da USP e ministrante da disciplina de graduação Educação Especial, Educação de Surdos e Libras, da Faculdade de Educação (FEUSP). 

Quem lê essa frase pode pensar que Sylvia já nasceu forte, decidida e confiante em si. Mas nem sempre ela se viu assim. Como comenta a docente, o olhar de pessoas ouvintes lançado sobre seu corpo muitas vezes a fez se sentir insuficiente. “Meu sonho era ser escritora, mas um certo dia uma professora me disse que eu não era capaz. Ali, ela eliminou a possibilidade que eu tinha de sonhar.” A escolarização básica, aliás, foi um processo doloroso. “No internato em que estudei, a gente era proibido de sinalizar, recebíamos castigos físicos se alguém nos visse, éramos sempre obrigados a oralizar”.

Após muitos outros julgamentos, ela decidiu ser uma professora diferente da que tivera. Foi a forma que encontrou de imaginar um futuro onde pessoas surdas ou ouvintes pudessem sonhar, mesmo que transpassados de limitações. Ela relata ainda que foi graças à Língua Brasileira de Sinais (Libras) que conseguiu recuperar sua autoestima. É assim que ela se comunica no dia a dia, inclusive na entrevista ao JC, realizada com o auxílio de uma intérprete.

* Um de seus primeiros contatos com a língua foi em uma antiga escola religiosa, o internato feminino Instituto Santa Terezinha, localizado na Zona Sul de São Paulo, que hoje não existe mais. No local, algumas freiras surdas utilizavam uma língua de sinais mais caseira – uma espécie de mímica adaptada por elas próprias –, mas sempre de maneira escondida. 

Essa sempre foi uma luta de Sylvia: a escolha e não a obrigatoriedade da oralização. “Eu não acho que seja ruim que uma pessoa surda aprenda a falar através da oralização, mas eu acho que isso não é para ser feito na escola. É um tratamento médico, um trabalho fonoaudiológico. Não é para a educação fazer isso, escola é lugar da gente aprender conteúdo curricular regular como qualquer outra escola.”

*Depois de algumas experiências em outras escolas sem intérpretes que a acompanhassem, Sylvia teve contato com uma família surda, seus vizinhos. Graças a esse convívio, ela foi capaz de se entender e se aceitar como uma pessoa surda. Um processo lento, mas que foi importante para reafirmar sua identidade.

Tendo a Libras como sua primeira língua, a professora, que também pesquisa acessibilidade linguística, avalia o quanto nossas sociedades associam a expressão oral como símbolo da cognição humana. Para ela, a língua de sinais não é apenas a representação visual das palavras, “Libras para mim é tudo. É minha vida. Foi a partir dela que eu consegui começar a existir, a viver. Não sei se você consegue imaginar a sua vida sem a língua portuguesa. Quem é você sem a língua que você fala? Sem a língua de sinais é como se eu não existisse”.

Libras para mim é tudo. É minha vida. Foi a partir dela que eu consegui começar a existir, a viver

Sylvia Lia, professora da Faculdade de Educação da USP

Sempre vista apenas como uma pessoa surda, foi graças ao concurso para a única vaga de docente da disciplina de Libras da FE-USP realizado em ampla concorrência devido ausência de cotas destinada ao público PCD, que ela passou a ser vista como gostaria. “Quando a banca disse: ‘Parabéns, você foi aprovada! A vaga é sua’, eu fiquei muito surpresa. Eu tinha conseguido porque eles me viram a mim, Sylvia, para além de uma mulher surda, não como uma pessoa que falta algo ou é incapaz”.

Eu tinha conseguido porque eles me viram a mim, Sylvia, para além de uma mulher surda, não como uma pessoa que falta algo ou é incapaz”

Sylvia Lia, professora da Faculdade de Educação da USP

Sua contratação foi uma grande conquista para a comunidade surda e ela espera abrir mais portas. Mas a USP muitas vezes ainda é inacessível para a professora. Os intérpretes que a acompanham, Amanda e Thiago, são terceirizados e só podem atuar no período das aulas, o que limita a participação da Sylvia em reuniões acadêmicas, eventos e palestras. 

Já na sala de aula, o ambiente é de constante troca com os alunos, que estão convivendo e se comunicando com uma pessoa surda. “Eu penso que a minha presença aqui, a minha aula, tem o foco de fazer os alunos se imaginarem no futuro, como é que dar aula e se deparar com alunos com vários tipos de deficiência? Como a gente proporciona para eles uma experiência educacional mais inclusiva, mais humana?”.

*Um desses impactos, e o dos mais marcantes para ela, foi uma apresentação na aula, em que os alunos queriam chamar a atenção dos grupos, a fim de pedir silêncio, e ao invés de utilizarem a voz, piscaram as luzes. “Não foi uma coisa que eu exigi, foi algo que eles foram pegando com o tempo e eu achei muito fofo porque é uma forma de demonstrar respeito comigo, foi uma atitude espontânea deles que me chamou atenção”.  

Para além das aulas, Sylvia almeja mais, e encontra pelo, Brasil afora, pessoas, assim como ela, que imaginam um futuro onde pessoas PCD possam assumir o protagonismo de suas vidas. “Eu ainda não tô satisfeita com onde eu tô. Eu quero mais. Minha história não termina aqui, é apenas o começo. Quem sabe algum dia eu não esteja por aí assumindo uma pró-reitoria, talvez, a direção da Universidade.”