“Depois do diagnóstico, o dia nunca mais passa naturalmente”

Funcionário da ECA, Tiago Murakami é um dos servidores da USP vivendo com câncer. A seguir, sua história por ele mesmo

Por Bárbara Bigas, Caio Andrade e Nicolas Vaz Coelho

Comecei a me sentir mal no dia 24 de dezembro de 2022. Fui ao pronto socorro e identificaram que meu intestino estava obstruído. Era Natal, não tinha médicos. Então eu voltei pra casa. Retornei no dia 26, porque não estava aguentando a dor. Naquele dia, descobri que estava com câncer no intestino, já no estágio dois. Felizmente, ainda não tinha se espalhado, mas precisei fazer uma cirurgia em que retiraram parte do intestino e colocaram uma bolsa de colostomia. 

O câncer foi curado e não acharam outros focos, mas mesmo assim me indicaram quimioterapia preventiva. Quando estava me preparando para a cirurgia de reversão da bolsa de colostomia que me permitiria voltar ao trabalho, descobri, em um exame, uma metástase no fígado. É importante dizer que esse tipo de câncer não tem cura. Em mim, ele está em vários pontos, o que é um problema, porque se estivesse em um só, poderia ser retirado por meio de uma cirurgia. 

Então, comecei a fazer uma quimioterapia bem intensa. Com os remédios, desenvolvi neuropatia, condição que me fez perder um pouco da sensibilidade dos dedos. Eu tomo quatro tipos de medicamentos e dependendo de qual eu tomo, perco o paladar ou sinto choque nos dedos. Antes de contar o que veio a seguir, gostaria de deixar registrada a minha história. 

 Meu nome é Tiago Murakami, tenho 43 anos e a minha trajetória na USP começou em 2001, quando ingressei no curso de Biblioteconomia na Escola de Comunicações e Artes (ECA). Aqui, fui aluno até 2006, quando me formei. Depois, trabalhei na prefeitura de São Bernardo do Campo e retornei à USP em 2013, quando fui aprovado em um concurso público. Fui funcionário do SIB, o Sistema de Bibliotecas da Universidade, e também chefe de catalogação, mas voltei à ECA tempos depois.

Tiago Murakami na biblioteca da ECA-USP. [Nicolas Vaz Coelho/JC]

A Universidade me deu uma perspectiva que eu não teria se não estivesse nela. Tive oportunidade de viajar para os Estados Unidos, para a Coreia do Sul, tudo isso com bolsas e em eventos universitários. Agora, começo a olhar para a frente e entender quais oportunidades eu terei no futuro. Eu paro e penso: “Preciso mudar a forma como encaro a vida”. Tudo que eu pensava para o futuro deu uma pausa e, acima de tudo, passei a buscar a sobrevida.

Ser bibliotecário foi uma das minhas vantagens nesse período. Quando descobri que tinha câncer, fui procurar entender o que era a doença e ter claro qual era o tratamento. De certa forma, isso acalma. Mas o inverso é verdadeiro. Eu não fico procurando curas, deixo tudo na mão do meu médico, graduado pela USP. Eu confio muito nas pessoas que são formadas aqui e tive bastante auxílio do pessoal que trabalha comigo. Mas a gente não tem um apoio institucional.

Infelizmente, o câncer não regrediu, mas também não cresceu. Pelo fato de ser uma doença muito agressiva, conseguir controlar é um ganho.

Ser um paciente oncológico é como um dominó, uma coisa dificulta a outra. Quando eu tive um período de pausa entre as quimioterapias, consegui fazer a cirurgia de reversão da colostomia. Passei um mês no hospital. 

Você fica o tempo todo procurando curar o problema, mas aparecem outros. Eu brinco dizendo que faço hora extra no mundo. Em breve, voltarei a fazer quimioterapia, mas, tecnicamente, minha condição será tratada como uma doença crônica. Se a metástase se espalhar demais, vamos tentar radioterapia ou, na pior das hipóteses, uma cirurgia ou transplante. 

Durante meu período de afastamento fiquei em casa, mas não isolado. Criei um canal no YouTube. Eu entendo bastante de tecnologia em bibliotecas, pessoas me procuram por causa disso. O canal é uma forma de depositar conhecimento, de registrar tudo que eu sei. São principalmente tutoriais de tecnologia em bibliotecas, coisas que normalmente um estudante de biblioteconomia tem dificuldade. É basicamente deixar pegadas no mundo, porque eu não sei se vou estar aqui daqui a pouco. 

Enquanto o câncer maior não estourar, eu vou conseguir voltar a trabalhar e a retomar a minha vida. A USP é divertida, na biblioteca se tem uma convivência com os alunos, nem sempre é fácil, mas é uma vida. É como respirar e, no final das contas, vai me ajudar. 

Estou afastado desde dezembro de 2022. Se eu voltar ao trabalho, consigo ajudar a biblioteca. Eu fui o último funcionário que entrou por concurso. Entrei em 2013, são 10 anos sem contratar ninguém. Estamos perdendo funcionários. A biblioteca teve que diminuir seu horário de funcionamento e, comigo estando fora, precarizou ainda mais o atendimento. Voltar, pra mim, vai ser muito bom. Ter contato com os alunos é uma das coisas que me traz vida na Universidade. 

Não é um papinho de auto-ajuda, mas depois do diagnóstico, a vida muda. É um baque. Você pensa: “Se eu morrer amanhã, o que vai acontecer?”. Não entenda mal, mas quem vai, foi. O problema é quem fica. Eu tenho um filho de 20 anos, e se tem algo que gostaria é de ter a oportunidade de participar da formatura dele. Eu continuo tendo planos para o futuro: voltar para a ECA e correr atrás das coisas que eu perdi nesses tempos longe da biblioteca.

E a minha consciência de que vivi bastante coisa e aproveitei a trajetória até aqui me comoveu. Acredito que a parte mais difícil de ter ficado no hospital foi ter presenciado o tratamento de câncer infantil. Era duro olhar para as crianças e vê-las na mesma situação que eu. Quando se tem uma doença, de certa forma, nós temos uma chance só. 

Existe a ideia de que vamos viver muito e não valorizamos cada coisinha que estamos passando. Hoje eu não tenho medo, e busco viver no conforto, com minha calça de moletom e minha blusa, assim como estou agora, um dia após o outro. Depois do diagnóstico, o dia nunca mais passa naturalmente.