Membros de coletivos culturais compartilham motivações e desafios para presença de cultura preta dentro da universidade
Texto por Miriã Gama*
Originário das comunidades afro-americanas dos Estados Unidos, o Hip Hop é um movimento de cultura popular que articula diversas expressões artísticas e é símbolo da cultura preta em todo o mundo. No Brasil, São Paulo sempre foi considerado um centro do movimento e a USP, por conta das mudanças no perfil socioeconômico dos estudantes, acabou se inserindo nesse cenário com grupos de dança, rap e pixo.
Para compreender melhor este cenário, o Jornal do Campus conversou com membros de coletivos culturais que atuam dentro da universidade com manifestações ligadas ao Hip Hop.
Ocupar espaços
Em 2018, com o marco histórico do primeiro ano de cotas étnico-raciais na USP, alunos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais (FFLCH) perceberam a necessidade de um local de acolhimento para os alunos cotistas recém-chegados. Dessa intenção, nasceu o SLAM USPerifa, uma competição de poesia falada que se perpetua até hoje como um espaço de identificação e pertencimento.
Este tipo de manifestação cultural surgiu na década de 80 com o artista Marc Smith, que, em uma noite de recitais, teve a ideia de dar notas para poesias. O próprio Marc batizou o formato de Grand Slam Poetry e rapidamente tornou-se popular em diversos países. Na capital paulista, o movimento já possui uma base forte estabelecida com coletivos pioneiros como o ZAP!Slam (Zona Autônoma da Palavra) e o Slam da Guilhermina.
Vick Gebara, uma das atuais slammasters – mestre de cerimônia de um SLAM – do USPerifa e graduanda de Ciências Sociais na FFLCH, conta que participar do coletivo a ajudou em seu processo de autoconhecimento enquanto pessoa negra. O Slam também marcou a vida acadêmica da artista, que fez um projeto de iniciação científica sobre “Etnografia dos slams em São Paulo: corpos periféricos na diáspora da periferia ao centro”.
Sobre a relevância do movimento, Vick relaciona o Slam com o conceito de ‘oralitura’ da pensadora Leda Maria Martins, que usa o termo para se referir aos saberes passados não apenas através da literatura tradicional, mas também por manifestações culturais. “Pra mim o Slam é presença, é corpo, é voz… é tudo isso e é muito significativo. E ele estar [presente] na USP é muito importante também. Como a gente fala no grito: Espaços negados agora ocupados”, comenta.
Permanecer e resistir
Ocupar esses espaços, fisicamente, é um dos principais desafios para outros coletivos. Um exemplo disso foi a Batalha de Rima da USP (BDUSP), que surgiu no final de 2022, sendo organizada por artistas de comunidades vizinhas à Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH). Inicialmente, o evento era realizado fora dos portões da universidade.
Em 2023, com maior presença de alunos pretos, pardos e indígenas na USP, os organizadores da BDUSP conseguiram trazer a batalha para dentro da EACH. Bruno Santos, graduando de Gestão Ambiental e um dos organizadores do coletivo, conta em entrevista ao JC que o objetivo da ação era ajudar os alunos cotistas a superarem o desafio de concluírem suas graduações. “Nós entendemos que, para além de ingressar de fato, o desafio é permanecer”, explica.
Bruno também comenta sobre o desafio pessoal que passou ao entrar na USP em 2018. Como membro da primeira turma com cotas étnico-raciais em seu curso, ele relata ter sofrido um difícil processo de adaptação, no qual não se sentia pertencente ao espaço. “Para os colegas brancos, essa ideia de pertencimento deve ter sido quase imediata, na própria festa de recepção, mas para mim levou um tempo”.
A inserção da Batalha dentro do campus leste da USP foi conturbada. Após a realização da primeira edição de fato na EACH, um processo administrativo foi movido contra Bruno pela direção da unidade. “Eles [diretoria] pensaram que a gente estava se reunindo ali para consumir drogas, beber e ouvir som alto”, explica e acrescenta que, apesar da edição ter ocorrido sem grandes problemas, a direção optou pela ação judicial, sob a acusação das ‘condições de realização’ da batalha.
Para o artista, o processo foi um choque muito impactante: “lutei muito para estar aqui e recebi um papel falando que poderia ser desligado da USP por organizar uma atividade cultural”. O episódio acabou resultando em uma advertência para o aluno e na formalização da BDUSP, que hoje é um projeto de extensão da EACH.
A BDUSP acabou se tornando fonte de inspiração para outros alunos negros que desejavam realizar suas manifestações artísticas também. Recém-criado, o USP Break Time é um dos ‘filhos’ da batalha e quer inserir o estilo de dança oriundo do Hip Hop dentro da universidade.
Expressar a arte
Outros coletivos, no entanto, optam pela não formalização junto à universidade. É o caso do USPixo, coletivo cultural criado por alunos de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes (ECA), que aplica oficinas de arte periférica em outras unidades e até mesmo fora do campus.
Angela Chiquetto, ou ‘Negrita’, conta que o movimento de criação do grupo foi orgânico e que os poucos alunos do curso se uniram por identificação, para fazerem suas manifestações artísticas e ocuparem esse lugar de referência. “A gente queria abrir os olhos da galera, [mostrar] que nós existimos e que a nossa arte periférica é tão válida quanto a arte europeia que a gente estuda”.
“Sempre que eu via algo de cultura preta na USP, era um branco ensinando”
Angela Chiquetto, membro do USPixo
Sobre sua experiência pessoal com o Hip Hop, Negrita conta como o movimento cultural foi decisivo para sua vida acadêmica: “eu saí da Letras porque me via muito mais como artista, e como artista de rua”. E, mesmo no curso de Artes Visuais, ela revela que o USPixo foi fundamental para fazê-la permanecer na graduação, uma vez que o espaço branco e elitista proporcionado pelo curso a reprimiu muitas vezes.
*Com edição de Isabella Gargano