As promessas, metas e rituais de final de ano da comunidade uspiana

Texto por Nicolle Martins**
Contagem regressiva, fogos de artifício, o estourar de um champagne (ou de uma sidra barata do mercado), vários pontinhos brancos dando pulinhos no mar iluminado pelas explosões de luz no céu: essa é uma cena de virada do ano que permeia o imaginário brasileiro. Nesse formato ou em qualquer outro, os últimos momentos do ano podem ser realmente mágicos, pois estamos condicionados a enxergá-los como uma oportunidade de mudar, renovar os ares e organizar a vida.
Carol Ferraz, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), explica o fenômeno. “A questão não é a virada do ano por si só, não é um ‘alinhar de astros’, é o que fazemos no final e início do ano. Nesse período, tentamos realizar tudo que não fizemos nos outros anos”. Segundo a pesquisadora, que investiga os significados das bagunças e organizações nas casas brasileiras, “quando o novo vem, precisamos preparar nossa casa para que ele chegue, e isso acontece em muitas culturas pelo mundo”.
Para aqueles cuja meta é se organizar melhor, Carol dá uma dica: “conheça as suas posses. Quando você sabe o que tem, fica melhor para administrar”. Ela ressalta que a cobrança por organização, que se reverte em metas irreais, pode ser prejudicial, e é fruto de uma tradição histórica no Brasil. “Estamos em uma sociedade cada vez mais produtivista. Tem-se um imaginário de que se eu conseguir organizar meu espaço, consigo ter mais controle da minha vida, então consigo produzir mais e ganhar mais dinheiro e, assim, serei mais feliz”.
Metas e rituais
Carol não fica de fora dos ritos e segue um semelhante ao de Bernardo Valente, estudante de Gestão de Políticas Públicas: anotar os feitos do ano. Para eles, é importante ter uma noção de tudo que foi realizado no período. “É bom olhar para trás e ver as coisas que a gente construiu, mas tem anos que o ‘construído’ é só ter sobrevivido”, comenta Carol.
Mateus, que estuda psicologia, deu início a uma nova jornada no meio de 2024, o que reforça a ideia apresentada pela pesquisadora de que o ano novo não é sobre a data em si. Após sofrer um acidente, o jovem mudou suas perspectivas e estabeleceu novas metas. “Eu queria me cuidar melhor, ter mais recursos para lidar com o sofrimento, beber menos, dormir mais e ter uma relação mais saudável comigo mesmo e com as outras pessoas”. Ele considera que cumpriu quase todas, exceto a do sono, mas levará para 2025.
Lívia, que cursa seu primeiro ano de Psicologia, tinha como meta terminar de ler os livros que acumulou na estante, se adaptar ao novo curso e praticar frequentemente atividades físicas, como o Muay Thai. Para 2024, sua meta era passar na USP. “Essa eu consegui, mas a da academia estou arrastando há uns 5 anos”. Quando está na praia, Lívia não esquece de pular as sete ondinhas. “Tem certos clichês que a gente nem sabe de onde vem, mas faz mesmo assim”, comenta.
Lucas Lyra, Natalia Tavares e João Vitor Vieira, estudantes de Engenharia Elétrica do quarto ano, fizeram promessas parecidas entre si para 2024: estagiar e não reprovar nas disciplinas do curso. A segunda funcionou para todos, e vai ser meta de 2025 também, mas Lucas e João Vitor ainda não estagiam e também manterão a primeira. Outra Lívia, essa da ECA, já conseguiu o estágio dos sonhos, e agora busca a efetivação.
Jhenypher Araújo não usa a cor preta na virada do ano, por medo do que aconteceu quando o fez: “Passei 2019 para 2020 de preto e deu no que deu [pandemia de Covid-19], nunca mais”. Esse relato é o oposto de Samuel, estudante de Jornalismo, que passou a virada do fatídico ano pandemico de branco, e diz que nunca mais vai repetir a dose.
Romeu*, da ECA, entre outras metas, gostaria de “conseguir uma namorada” em 2024, mas não a realizou. Para 2025, a expectativa continua. “Como sempre, irei passar de rosa dos pés as cabeças, mas esse ano irei apelar e arranjar uma cueca rosa”.
Evaristo*, que cursa psicologia, tem um rito mais específico, que vai além da cor: ele sempre passa de camisa de linho branco, porque o lembra da música Mucuripe, interpretada pelo cantor Fagner, que cita o tecido.
Os ritos das cores de roupa e o pular de sete ondas são os mais famosos no Brasil. A origem do costume de usar cores com diferentes propósitos é incerta, mas a predominância da cor branca, que diz-se significar paz, vem da religião de matriz africana Candomblé, que utiliza a cor em seus ritos, muitas vezes na praia.
Rafael Gelli, que cursa Geografia, também entra no novo ano com um rito religioso: ele reza para São Jorge, o santo guerreiro na Igreja Católica, que também é associado a uma divindade da Umbanda, Ogum. A figura, famosa em todo o mundo, aparece em diversas músicas e dá nome a uma das mais famosas novelas brasileiras, Salve Jorge.
As sete ondas também fazem referência aos ritos do Candomblé e de outra religião, a Umbanda. O “sete” é um número de poder e aparece diversas vezes nas crenças, que tem sete orixás, divindades representantes da natureza. No Candomblé, era costume pular ondas para referenciar Iemanjá, associada aos rios e aos mares.
Carol Ferraz, que já foi aluna especial no Instituto de Psicologia, comenta que a associação de religiões e o ano novo é muito comum: “Muito do ano novo tem conexão com o divino, mesmo que não estejamos falando de Deus, estamos falando de fé”.
*Alguns entrevistados prefeririam não ser identificados, e foram usados nomes fictícios
**Com edição de Davi Madorra