Projeto de lei que pretende garantir neutralidade e proteger o usuário contra abusos aguarda votação no Senado
Lara Deus
O projeto de Lei 2126/11, mais conhecido como Marco Civil da Internet (MCI), foi aprovado na Câmara dos Deputados em 25 de março e agora será votado pelos 81 senadores brasileiros. Caso eles decidam a favor da chamada “Constituição da internet”, o Brasil será pioneiro na regulamentação de direitos e deveres de quem usa a web. Entre outras questões, ele obriga que as empresas obedeçam à neutralidade da rede e cria normas para o armazenamento e fornecimento de dados de internautas. A forma como ele foi redigido é inédita na legislação brasileira, já que houve participação dos cidadãos na redação da proposta.
A neutralidade da rede garante que empresas de telecomunicações não possam interferir na qualidade da conexão de acordo com o conteúdo acessado. Isto assegura que a internet fique como ela é hoje, já que não poderão ser vendidos, por exemplo, pacotes que permitam acessar apenas um serviço, o que a tornaria semelhante a uma TV a Cabo. Segundo Beá Tibiriçá, diretora do Coletivo Digital, a neutralidade é importante para que não se crie uma internet “para ricos” e outra “para pobres”. O conceito foi um dos pontos-chave para a demora da votação no Congresso, pois mexe com possíveis fontes de lucro das empresas de telecomunicações.
Em 2013, o Marco Civil da Internet entrou em pauta devido às acusações da espionagem do governo norte-americano. A lei determina regras para o armazenamento e o fornecimento dos dados e registros de conexão dos usuários. Agora, cedê-los só será obrigatório com uma ordem judicial. O projeto também garante que as infrações cometidas por internautas serão de responsabilidade da pessoa, e não do serviço ou provedor. Assim, caso um conteúdo precise ser removido da web, apenas ele está em risco, e não o próprio site que o hospeda. Somente com decisão de um juiz esta remoção deve ser feita, exceto quando o material expõe a intimidade de uma pessoa que solicite a retirada ao site.
Participação popular
A ideia da criação de um MCI foi empreendida pelo Governo Federal quando propostas de criminalização de práticas na web ganharam força, sem estabelecer obrigações das empresas que lidam com a internet e direitos dos usuários. Assim, em 2009, uma equipe do Ministério da Justiça definiu eixos importantes à regulamentação e, através da plataforma Cultura Digital, os disponibilizou para debate durante dois meses.
Depois da primeira rodada de contribuições, o projeto de lei foi redigido e colocado sob uma nova consulta à população, já em 2010. No ano seguinte, o Governo Federal entregou a lei para o poder legislativo, que seguiu sob relatoria do deputado federal Alessandro Molon até o último mês de março, quando foi aprovada e enviada ao Senado. Segundo Francisco Brito da Cruz, que estuda o tema em seu mestrado na Faculdade de Direito da USP, o modelo é positivo, pois “deixa claro os argumentos que estão em jogo numa discussão regulatória”. Além disto, pessoas que moram longe também podem participar do debate e colocar suas opiniões, explica.
Em outros países, não há lei semelhante que congregue diversos aspectos, de acordo com o pesquisador. O que se vê são apenas leis que tratam de pontos como a neutralidade e a proteção de dados individualmente. “Isso é inovador porque estabelece um parâmetro de que talvez tenha que ter uma espécie de Constituição de internet para começar a conversar sobre regulação”. Mesmo com alterações do texto feitas no Congresso, Beá classifica o Marco Civil como mundialmente revolucionário.
O ministro das Comunicações Paulo Bernardo pediu que os senadores tenham agilidade ao votar o projeto, já que em 23 e 24 de abril ocorre em Brasília o NETmundial – Encontro Multissetorial Global Sobre o Futuro da Governança da Internet. Lá, além de apresentar o projeto brasileiro sobre regulação do setor, o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) pretende sugerir proposta de normatização da internet mundial com os mesmos princípios.
Os aspectos positivos
Pioneiro, Marco Civil da Internet tem origem popular
Ana Luiza Tieghi
Como explica Sérgio Amadeu, professor da UFABC e representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil, que acompanhou de perto toda a trajetória do projeto, a proposta de formulação do Marco Civil da Internet partiu da Fundação Getúlio Vargas do Rio de
Janeiro e depois foi colocada para debate público na rede. “Mais de 2 mil contribuições foram realizadas”, conta.
Alfredo Goldman, professor do Instituto de Matemática e Estatística (IME) e representante da Sociedade Brasileira de Computação na instituição, acredita que “quando lutamos pela aprovação do Marco Civil, estamos buscando uma internet mais igualitária, com direitos a todos”.
O docente destaca ainda que o projeto teve apoio de Tim Bernes-Lee, um dos inventores da rede como é usada na atualidade. O pioneirismo do Brasil na formulação do projeto é outro ponto positivo. “Ter o Marco Civil aprovado é inclusive uma forma de mostrar a relevância do Brasil para o mundo”, defende Goldman. Uma grande qualidade do texto do Marco Civil da Internet é que ele não visa à criminalização do usuário, como é comum acontecer em legislações sobre o uso da rede. “É a melhor, mais avançada e democrática lei da internet”, afirma Amadeu.
Os dois reconhecem que o texto original do Marco Civil sofreu alterações devido a pressões políticas movidas por empresas de telecomunicação. Foram citados exemplos como o Artigo 21, que possibilita que conteúdo seja retirado de sites sem passar pelo Poder Judiciário, o que para Amadeu pode permitir que haja censura prévia do conteúdo, e a obrigatoriedade do armazenamento de parte do histórico dos usuários por um determinado período de tempo, no Artigo 16. Goldman crê que essa mudança possa prejudicar provedores pequenos, que não terão infraestrutura para realizá-la.
Apesar das alterações, ambos acreditam que a legislação não deixou de ser essencial. “Sem o Marco Civil, as empresas vão ter condição de agir sem ter uma lei que as restrinja”, conta Amadeu. “Mesmo com esses problemas, nós iremos continuar a usar a internet livremente”, completa.
O projeto se encaminha agora para votação no Senado, e tanto Goldman quanto Amadeu destacam a importância da pressão da sociedade para que ele seja aprovado sem mais mudanças. O momento seria de mostrar aos políticos que os brasileiros entendem a necessidade do Marco Civil e querem que ele seja implantado. “Direitos não dão em árvore”, afirma Amadeu, “nós temos que lutar por eles”.
Ressalvas ao projeto
Brechas na elaboração podem gerar quadro de censura
Ana Paula Souza
Vitor Blotta, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA), vê o Marco Civil da Internet como uma forma de fazer valer para a rede direitos que já estão consagrados pela Constituição. Para ele, trata-se de uma ideia inovadora, com resultados que vão além da própria internet, permitindo conciliação entre a liberdade de expressão, o direito à privacidade e o uso justo de serviços.
Sérgio Amadeu, no entanto, faz ressalvas à iniciativa. Segundo o professor da UFABC, o projeto contém passagens que poderiam gerar um quadro de censura prévia na internet. Entre eles, o Artigo 21, que menciona a remoção de conteúdo vinculado à pornografia e à nudez sem ordem judicial. Outro ponto de oposição ao projeto diz respeito à obrigatoriedade de que empresas retardem o registro de quem está acessando os conteúdos que elas dispõem na internet. Para Amadeu, com essa obrigatoriedade, há um incentivo à interceptação de perfis na rede. “A guarda de dados deve ser feita apenas sob suspeita. Não podemos considerar que toda pessoa que navega na internet é um suspeito, e é isso o que está acontecendo”, afirma.
Já para Bruno Conrado, pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), esse registro de dados era feito anteriormente, mas não regulamentado. “A maior parte das críticas ao projeto, inclusive, diz respeito à inserção de regulação em pontos onde essa medida não havia sido necessária até o momento. Porém, a falta de regulação é justamente o ponto que não permitia que crimes envolvendo a invasão de privacidade fossem tratados de maneira mais justa”, afirma. Em relação à censura prévia, acredita que o Estado não terá controle direto sobre aquilo que é publicado na rede e que caberá ao poder judiciário, mediante denúncia, decidir se um determinado conteúdo será retirado.
Outro ponto de discórdia diz respeito às concessões do governo para a aprovação do projeto. Entre elas, está a hospedagem de dados no Brasil. Para Conrado, não foi uma perda tão significativa, pois a liberdade de expressão, a privacidade e a neutralidade foram garantidas. No entanto, Alfredo Goldman, professor do IME, alega que, embora a legislação nacional se aplique também para empresas de hospedagem localizadas no exterior e que prestam serviços no Brasil, não há como mensurar de fato como isto irá funcionar na prática.