Notas sobre as possíveis consequências da Medida Provisória nº 746, que determina a reforma do ensino médio
Fernanda se prepara para seu trabalho no escritório. Ela entrou no ensino médio em 2017, ano a partir do qual a Medida Provisória nº 746 começou a ser implantada – e, com ela, a reforma da educação. Fernanda escolheu, aos 14 anos, seguir a área de ciências da natureza. Digo “escolheu” por falta de um termo que descreva o que aconteceu: seus pais não queriam que ela fosse para as humanidades ou linguagens porque tinham certeza de que, se o fizesse, ela não conseguiria um bom emprego no futuro. Nenhuma de suas amigas ia para a tal da “formação técnica e profissional” – seus pais não queriam que elas passassem o ensino médio inteiro num curso técnico, já que elas não começariam a trabalhar por pelo menos mais uns anos. Então isso já estava fora de cogitação. Suas melhores notas eram as de ciências, apesar de história ser sua matéria favorita. Por isso, ela foi para as ciências da natureza. Quando se formou, pareceu uma escolha lógica prestar engenharia. Afinal, ela sempre foi boa nas exatas. No cursinho, tentou correr atrás da filosofia, da literatura, da história da arte. Mas não tinha jeito. Não tinha tempo. Ela sempre foi melhor em física, matemática, química. Apostou em seus pontos fortes, passou raspando, mas passou. Conseguiu seu diploma. Hoje trabalha numa empresa de consultoria. Nunca parou para pensar se é feliz em seu emprego. E não acha que possa reclamar – tem gente que está muito pior, não é mesmo?
Elena não conhece Fernanda, apesar das duas terem nascido no mesmo ano e na mesma cidade. A família de Elena não conseguia pagar o colégio em que Fernanda estudou. Na verdade, agora que ela precisava estudar em período integral, a família de Elena conseguiria pagar ainda menos coisas. Até então, todos contavam com a certeza de que ela começaria a trabalhar aos 14 anos e ajudaria a pagar as contas. Sabiam que não era o ideal, mas era o único jeito. Era, no passado, porque a tal da Medida Provisória pegou todo mundo de surpresa. De repente, só tinha ensino médio integral. Elena não poderia trabalhar de dia. Deram um jeito: a mãe arrumaria mais um emprego, e quando voltasse da escola, a menina cuidaria das tarefas de casa. E assim ela fez. Cuidou dos irmãos menores, fez as jantas, lavou as roupas, limpou a casa. Fez de tudo, só não conseguiu fazer suas lições de casa. Sua formatura foi um alívio para todos: agora poderia focar no que importava. Arrumou seu emprego, finalmente. A faculdade nem passou pela sua cabeça. Seu segundo grau completo (com diploma que atestava “formação técnica e profissional”) já bastava para ajudar em casa.
Marcelo dá aula desde que se formou em filosofia, em 2003. Já foi professor do fundamental I (dava aula de “Convivência”), do fundamental II (aulas de “Ética e cidadania”), de cursinho (a aula que os alunos sempre matavam para estudar física, química…). Até que descobriu o que realmente gosta de fazer: dar aulas no Ensino Médio. Ele adorava acompanhar o crescimento dos alunos nos anos mais turbulentos de suas vidas. Sua maior felicidade era ver alunos que no primeiro ano desprezavam a filosofia se formarem bons debatedores e cidadãos ainda melhores. Quer dizer, até a reforma, claro. A partir de 2017, ele só deu aula para quem já se interessava pelo assunto. Os debates já não eram os mesmos – isso quando existiam. O colégio em que ele trabalhava na época optou por não incluir filosofia em seu currículo. Em sua procura por um novo emprego, até encontrou escolas que valorizavam a filosofia. Mas também encontrou vários outros candidatos para as vagas de professor. Candidatos que não tinham o diploma de licenciatura, mas afirmavam ter “notório saber” sobre o assunto. Candidatos que aceitaram fazer o mesmo trabalho que ele fazia, mas por um salário menor que o dele. Depois de um tempo, Marcelo decidiu voltar a dar aulas no ensino fundamental. Mas também já não era a mesma coisa: ao invés de Ética e Cidadania, agora ele precisava ensinar desde os sofistas até Foucault para as crianças.