Durante a ditadura, 10% dos mortos e desaparecidos políticos, exatamente 47 pessoas, eram ligados à Universidade de São Paulo
Por Vitor Garcia
A reitoria da Universidade de São Paulo (USP) manteve um setor de investigações durante a ditadura, a Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI), considerado irregular até pelo temido órgão do regime militar, o Serviço Nacional de Informações (SNI). A finalidade da AESI era investigar professores, funcionários e alunos supostamente subversivos. Durante a ditadura, 10% dos mortos e desaparecidos políticos, exatamente 47 pessoas, eram ligadas à Universidade.
Essas são duas das principais conclusões da Comissão da Verdade da USP (CV-USP), que lançou recentemente o relatório final após quase cinco anos de trabalho. O resultado é apresentado em onze volumes, que reúnem documentos e depoimentos de pessoas ligadas à Universidade no período da Ditadura.
O destaque fica com o exemplar sobre a AESI, responsável pelo monitoramento e triagem no interior da USP. Há também volumes dedicados exclusivamente a cinco faculdades: Medicina, Arquitetura e Urbanismo, Direito, Filosofia, Ciências e Letras, além da Escola de Comunicações e Artes.
De acordo com a presidente da Comissão, Janice Theodoro, “resgatar essa história permite que se compreenda quais foram os mecanismos utilizados pelo Estado para impedir a existência do pensamento crítico na sociedade e na USP”.
Os embates na Universidade, no entanto, não se restringiam apenas à administração. “Em praticamente todas as unidades havia uma tensão entre dois eixos de conflitos superpostos: partidários e opositores do regime militar e partidários e opositores da reforma progressista da universidade”, explica Maria Hermínia Tavares de Almeida, também membro da Comissão.
A CV-USP foi instituída no dia 7 de maio de 2013, com mandato inicial de um ano, mas se estendeu. Posteriormente, a Comissão passou a contar com financiamento da Fapesp e teve a presidência transferida do professor Dalmo Dallari para Janice Theodoro.
Órgão ilegal
Em meio às violações praticadas pela ditadura civil-militar, a CV-USP constatou que um dos braços da cadeia de comando eram as AESIs, estabelecidas nas universidades. A partir desses órgãos, “as instituições realizaram perseguições, eliminaram opositores políticos por meio de cassações, impediram a celebração de contratos de trabalho e realizaram detenções ilegais e arbitrárias, desaparecimentos forçados, torturas, execuções e ocultação de cadáveres.”
Maria Hermínia explica que a Comissão constatou também a existência de uma vigilância permanente na USP. “Agentes policiais relatavam o que acontecia em assembleias estudantis e mesmo em reuniões menores e fechadas”. Ela salienta que embora houvesse pressão para que USP e Unicamp criassem AESI, o Ministério da Educação havia determinado a criação desses órgãos apenas em universidades federais.
Na USP, a decisão de criá-la partiu diretamente do reitor Miguel Reale, em 1972. O órgão tinha como objetivo “realizar triagem ideológica de alunos, professores e funcionários”. Ao mesmo tempo, a Unicamp, sob a reitoria de Zeferino Vaz, não criou seu órgão de perseguição.
O relatório da CV-USP apresenta ainda um documento que demonstra que a AESI foi criada sem autorização do SNI. “Nunca havia ficado claro que o reitor autorizara a montagem de um serviço de informação dentro da USP, mas com o documento, a responsabilidade pode ser atribuída e isso é fundamental”, salienta Janice. “A sala da AESI era inclusive no bloco da Reitoria, ao lado da sala do reitor.”
O órgão era chefiado por Krikor Tcherkesian, que mantinha frequente contato com o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), como demonstra um dos documentos levantados pela CV-USP, o livro de entrada e saída. Ao longo das gestões Reale, Orlando Marques de Paiva e Waldyr Muniz Oliva, a AESI produziu inúmeros informes que eram compartilhados com o SNI, as Forças Armadas, o Deops e as polícias.
Para esta reportagem, o Jornal do Campus não conseguiu localizar Tcherkesian. No caso dos reitores citados, Muniz Oliva preferiu não se manifestar, por estar fora do país por tempo indeterminado. Os demais reitores faleceram.
Perseguições
A vigilância na USP gerou casos de prisão, morte, desaparecimento, privação de trabalho, proibição de matrícula e interrupção de pesquisas. Além disso, a AESI trabalhava junto à Coordenadoria de Administração Geral (CODAGE), responsável pelo andamento dos processos. Seu diretor era Fausto Haroldo.
Os relatórios produzidos pela AESI foram todos queimados, em 1982, sob a ordem do ex-reitor Hélio Guerra Vieira, após assumir e extinguir o órgão, conforme declarou em depoimento à Comissão. As cópias desses arquivos, contudo, foram resgatados no processo de coleta de documentos realizado no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no Arquivo Nacional e nos arquivos do SNI, DEOPS e da própria USP.
Maria Hermínia explica que além da preocupação com documentos, os depoimentos coletados pela CV têm valor inestimável, por permitirem contar a história do ponto de vista de quem a sofreu. Nos depoimentos, os ex-alunos relatam as torturas sofridas e o clima político da época.
O relatório esclarece ainda que a perseguição na USP era realizada, principalmente, através de mecanismos do direito administrativo, visando trazer legitimidade aos processos de perseguição. Com isso, contratações e matrículas eram barradas por justificativas relacionadas, por exemplo, à lei eleitoral ou à acumulação de cargos.
Um dos casos mais emblemáticos é o da professora Ana Rosa Kucinski, desaparecida política, que foi demitida da USP sob a justificativa de abandono do cargo. Em 2014, a Congregação do Instituto de Química aprovou, por unanimidade, a anulação da decisão e inaugurou um memorial em sua homenagem.
A CV-USP esteve envolvida também na colocação do quadro do ex-reitor Helio Lourenço (1967-1969) na Galeria de Reitores da Universidade. Lourenço foi cassado na ditadura por liderar a discussão sobre a reforma universitária.
“O lado da USP que tinha uma preocupação social foi perseguido e novos professores que tinham uma posição política contrária ao sistema não podiam entrar dentro da universidade”, explica Janice.
Críticas à CV-USP
Desde sua criação, a Comissão recebeu críticas por parte de professores, funcionários e alunos. Antes da criação do órgão, as entidades dessas categorias vinham desenvolvendo uma proposta de CV, com debates no Fórum pela Democratização da USP. À época, um abaixo assinado reuniu quase 5 mil assinaturas e a proposta chegou a ser debatida com a Reitoria.
“Nós encampamos essa ideia na USP quando Comissões da Verdade estavam se capilarizando para diversas organizações da sociedade civil, estados, municípios, sindicatos e universidades”, explica Renan Quinalha, que representava a Associação dos Pós-Graduandos. “Nós reivindicávamos uma comissão autônoma em relação ao poder que a instituiu e composta igualmente por representantes indicados pelos setores da universidade”, completa.
Mas a Reitoria optou por instaurar a CV-USP nomeando os sete docentes para a Comissão. De acordo com Magno Carvalho, do Sintusp, as entidades estavam elegendo representantes quando foram surpreendidos pelo comunicado do reitor Grandino Rodas.
Outra crítica relaciona-se à divulgação e acompanhamento do trabalho da Comissão. “A ideia era que se produzisse um relatório em conjunto com a comunidade e não apenas entregar um relatório de milhares de páginas”, explica Renan. Isso porque, segundo ele, que também integrou a CV do Estado de São Paulo, uma Comissão da Verdade não tem só a função de esclarecimento dos fatos, mas de mobilização e sensibilização de determinada comunidade. “No fim, ficou parecendo o modelo de trabalho acadêmico”.
Tanto o Sintusp quanto Renan não entraram no mérito da qualidade do relatório, pois não tiveram tempo suficiente para analisá-lo. No entanto, ambos concordam que a Comissão não terá como esconder a forma como foi instituída. “Por mais primoroso que seja o trabalho, ele já é comprometido por um vício de origem, pela falta de transparência e de diálogo com setores da universidade”, critica Renan.
A posição de Magno de Carvalho, do Sintusp, “coincide com a posição das demais entidades, de não reconhecer os pareceres e conclusões desta comissão imposta pelo reitor”.
Procurada, a Reitoria afirmou não ter condição de se manifestar sobre a proposta alternativa, porque “essa discussão envolvendo o Fórum Aberto pela Democratização é anterior a 2013″.
As professoras Janice e Maria Hermínia relatam que as escolhas para a Comissão partiram diretamente de Rodas, que levou em consideração o envolvimento das pessoas com a questão, pois muitos foram cassados ou perseguidos na Ditadura.
Maria Hermínia salienta que a reitoria, nas gestões Rodas e Marco Antonio Zago, lhes “deu o essencial: ampla liberdade para apurar os fatos, sem qualquer interferência”. Janice reforça que a USP nunca impediu o acesso a documentos, ainda que encontrasse dificuldades devido ao orçamento, inclusive por falta de materiais básicos.
“A Comissão não teria existido, contudo, se não fosse a pressão do movimento das organizações de alunos, funcionários e professores. Mas é difícil dizer o que teria acontecido se a comissão fosse outra”, defende Maria Hermínia. “Talvez, seja agora o momento de ler o relatório, discuti-lo, criticá-lo e continuar o trabalho que fizemos”.