“Entidades esportivas precisam responder a temas sensíveis da sociedade”

Doiara Santos, professora de Educação Física na Universidade Federal de Viçosa analisa o veto à toucas para cabelos afros nas Olimpíadas de Tóquio e suas consequências no imaginário social

 

por André Deviche e Gabriel Guerra 

Etiene Medeiros. Campeonato Brasileiro Senior na UNISUL. 25 de Novembro de 2016, Palhoca, SC, Brasil. Foto: Satiro Sodré/SSPress

 

As Olimpíadas de Tóquio tiveram início em julho, mas dias antes um assunto polêmico já ganhava relevância: a proibição de toucas para cabelo afro na natação. A Fina (Federação Internacional de Natação) rejeitou o pedido para certificação de toucas especiais para cabelo afro no evento. A justificativa da entidade foi porque as toucas não seguem “a forma natural da cabeça”. A solicitação das toucas foi realizada pela empresa britânica “Soul Cap”, que produz toucas com ajustes e proteção do contato entre o cloro e cabelos afros. 

A decisão da Fina joga luz à representatividade da população negra nos esportes. Historicamente, o preconceito racial segregou e excluiu o povo negro das práticas esportivas. Um claro exemplo encontra-se no Aristocrata Clube, surgido em 1961 na cidade de São Paulo, como associação civil beneficente que visava firmar a cultura e identidade negra. À época, não era raro ver clubes e organizações sociais da capital paulista fecharem suas portas à comunidade negra.

O Jornal do Campus (JC) conversou com Doiara Santos, professora do Departamento de Educação Física na UFV (Universidade Federal de Viçosa) e autora do estudo “Natação e questões étnico-raciais: representações midiáticas. Na entrevista, a professora fala sobre a sub-representação da população negra na natação e as consequências após a decisão da Fina. 

Como você se interessou pelo tema do seu trabalho, relacionando natação com representações midiáticas? 

Quando criança e adolescente, eu fui atleta de natação em competições escolares na minha região. Eu sou da Bahia, estado de maioria negra. O local onde eu tive acesso às piscinas eram escolas públicas, na única da minha cidade que tinha piscina. Então, eu demorei até um pouco para perceber a existência dessas implicações étnico-raciais na natação. Eu nadava em uma escola pública para participar de competições escolares, daí veio o interesse em cursar Educação Física inclusive. 

Na foto, Doiara Santos, professora do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Viçosa. Foto: Doiara Santos/Arquivo Pessoal

 

Na pesquisa que a senhora conduziu, foi constatada uma sub-representação de atletas negros na natação, pelo menos no âmbito dos discursos midiáticos. Poderia descrever de que forma isso acontece?

Naquele estudo, eu estava falando de esportes de alto rendimento que é um nicho excludente e seletivo, uma vez que o que se quer ver é o alto nível de competitividade de determinada modalidade. Eu lembro muito bem da minha adolescência, de ver fotos da delegação de natação brasileira e identificar poucos atletas negros ali. E você começa a pensar: ‘em um país cuja população tem maioria negra, como se explica uma representatividade tão pequena dessa população em modalidades como a natação?’.

A Fina coloca no seu estatuto que ela é responsável por promover a modalidade em todos os seus aspectos. Acesso e prática. E, de repente, você percebe que nesse cenário do alto rendimento, a representatividade é pouca.

De que forma grandes competições como as Olimpíadas podem ajudar na garantia de visibilidade de pautas como o combate ao racismo?

Entidades esportivas em geral assumem a mensagem ideológica de princípios democráticos, de valores universais. Como instituições sociais, elas assumem uma responsabilidade social. O esporte não é uma bolha, ele reflete e reproduz os problemas sociais, e eles são toda e qualquer situação que não seja compatível com os valores de um grupo social. 

Quando uma entidade esportiva é omissa ou ela tem processos decisórios em sua governança que não respondem a temas sensíveis das nossas realidades, elas deixam de cumprir essa responsabilidade social e estão admitindo que esse problema possa se perpetuar. 

Elas precisam responder a temas sensíveis da nossa sociedade para demonstrar que estão de fato concretizando as vias ideológicas que elas tanto mobilizam para se intitular ‘instituições sem fins lucrativos’.

Nesse sentido, qual o impacto do veto imposto a toucas de natação para cabelos afro?

A reação do público em geral fala muito sobre esse impacto, que é desencorajar pessoas pretas ou pessoas cujo os cabelos não atendam a determinados padrões, a participar dessas atividades aquáticas.  

O impacto é sobre o imaginário social, sobretudo, quando meus alunos do curso de educação física passam a acreditar que o negro não tem “predisposição” para natação. Então, quando uma organização toma essa atitude, ela vai de encontro a vários movimentos sociais, vai de encontro à própria produção científica que diz que referências de sucesso inspiram pessoas a prática de certa modalidade.

Se eu não vejo um nadador que represente a mim, como pessoa, em vários aspectos, inclusive ao cabelo e à cor da pele, eu posso tender a não acreditar que pra mim também seja possível.

Temos que nos atentarmos para a criação de forças mobilizadoras para abraçar a diversidade no esporte e não para impor barreiras sobre ela. 

No Brasil, nem 6% dos atletas que já representaram o país em Olimpíadas, em 100 anos, eram negros. A que causas e consequências podemos atribuir essa sub-representação?

Historicamente se perpetuou uma crença de que pessoas negras não encontrariam no esporte o sucesso da prática. A própria Fina coloca que nadar é uma habilidade essencial à vida, ainda que a gente não esteja falando do nível competitivo. Quando observamos que as mortes por afogamento nos EUA e na Inglaterra acontecem principalmente com crianças negras, estamos falando de vida.

Menos de 30% das escolas brasileiras têm alguma instalação esportiva. Então, as consequências são graves quando a gente fala em natação porque elas perpetuam isso no imaginário, desencorajam a participação no esporte e chegam a esse indicador que é mais grave ainda, que são as mortes por afogamento.