Denúncia póstuma

Como uma vítima de negligência médica pode descansar em paz sem justiça?

 

 

 

por Pedro Ferreira

Arte: Rebeca Alencar

 

Escrevo em profunda imersão nos subtons de tristeza e cólera, enquanto vislumbro pela última vez os momentos que antecedem minha travessia. Lembro-me de encarar o teto incandescente do corredor do hospital onde minha internação foi apressadamente preparada. Os feixes luminosos atravessavam meu corpo como se o inspecionassem, à medida em que a maca era empurrada em direção ao leito. Já com 70% dos meus pulmões comprometidos pela doença, a oxigenação transportou alívio em minhas veias. Não foi preciso insistência para que eu fornecesse minha assinatura em um documento qualquer relacionado ao tratamento. Mais tarde, o médico me receitou um kit de medicamentos, dizia ele que eram orientações da instituição. Tive a impressão de enxergar uma nuvem tempestuosa no lugar de seus cabelos enquanto ele deixava o quarto e ia de encontro aos outros 59 pacientes de seu plantão. 

Alguns dias depois me informaram que reduziriam a oxigenação, que os medicamentos estavam funcionando. Praguejei que não me sentia melhor, mas não deram ouvidos. Tive que confiar minha vida àqueles profissionais na esperança de que em breve poderia voltar para casa. A cada dia que passava, o desespero preenchia o vazio em meu corpo. As súplicas por ar não comoveram os médicos, que continuaram com as mesmas orientações. Logo a inconsciência me tragou como uma maré enfurecida. As ondas me arrastavam gradativamente e os bolsões de ar ficavam cada vez menores. Em movimentos pendulares, recobrava a consciência breve, apenas para que a maré me arrastasse novamente. 

O misterioso índigo tornou-se insípido ciano, até que o ciano dissolveu-se em branco. Pouco depois o branco virou preto. E o preto virou nada. Não pude me despedir de meus familiares, nem revelar meus desejos póstumos. Não tive a contemplação de ver minha vida passando diante de meus olhos, com os quadros de memórias formando um longa-metragem acelerado. Não tive a chance de me perdoar pelos erros ou lamentar os sonhos não concretizados. Negaram-me o adeus e as últimas palavras de afeto. Sobretudo, negaram-me o direito a uma passagem pacífica, pois a revolta incessante não encontrará uma válvula de escape. Não descansarei em paz. Roubaram-me a vida e a morte. Roubaram-me ainda a garantia de justiça e de responsabilização dos envolvidos. A resposta para o sofrimento asfixiante pelo qual eu e os outros 40% dos pacientes internados na instituição com caso grave de Covid-19 passamos? Um mero acordo de ajuste de conduta entre a rede hospitalar e as autoridades que deveriam promover justiça. 

Como nossas famílias seguirão com suas vidas? Como nossas vozes serão ouvidas se nos negaram até mesmo o ar? O único conforto garantido pela instituição foi o cinismo cordial de fazer com que meu leito fosse utilizado para outro paciente. Afinal o óbito também é alta, não é mesmo?