Assassinado pela ditadura, a memória do líder estudantil da USP ressoa até hoje como símbolo de resistência, do DGE à escola pública
por Pedro Fagundes e Rafael Canetti
Assassinado. Alexandre Vannucchi Leme teve sua vida tirada pelo Estado – e não por Deus. Assim, manifestou o arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, perante uma Catedral da Sé tomada por mais de 3 mil estudantes. Não foi atropelado. Não se suicidou. Não fugiu. Não era indigente. O garoto de Sorocaba, cidade de São Paulo, de 22 anos, estudante do curso de Geologia da Universidade de São Paulo (USP), foi capturado, torturado, morto e sepultado pelo DOI-Codi.
Em 23 de março de 1973, após um dia e meio de tortura, Vannucchi foi encontrado morto no x-zero – cela forte, totalmente escura, onde ficava detido nos intervalos do suplício. A falácia, portanto, começa no registro da data. Não foi preso, tampouco assassinado na dia indicado. Tratava-se do 17 de março, sábado, quando Vannucchi padeceu no cárcere e deu início à série de mentiras patrocinadas pelo exército.
O professor de jornalismo da Cásper Líbero e primo de segundo grau de Alexandre, Camilo Vannuchi, conta como, em um primeiro momento, os policiais divulgaram aos presos políticos a versão do estudante ter se matado com uma lâmina de barbear. Durou poucos dias. Em 23 de março, data “oficial” da morte, os órgãos de segurança veicularam o óbito como decorrência de um atropelamento. Supostamente, Vannucchi teria corrido da polícia e, na fuga, batido de frente com um caminhão.
Diante do anúncio, José de Oliveira Leme dirigiu-se ao Instituto Médico de São Paulo para verificar o cadáver do filho. Como resultado, o ultraje. Vannucchi havia sido sepultado como indigente, sem caixão, em cova rasa, forrada de cal virgem para acelerar a decomposição do corpo e apagar a história. Em resposta, 30 centros acadêmicos de São Paulo e Rio de Janeiro propuseram celebrar uma missa de sétimo dia. O natural seria realizá-la em 30 de março. Porém, parte dos diretórios, em tom provocativo, insistiu no dia 31 — aniversário do Golpe.
Para o diretor da Oboré e, à época, militante do Centro Acadêmico Lupe Cotrim (Calc), Sérgio Gomes, a mudança era uma cilada. Além disso, ninguém acreditava ser possível contar com a presença o arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns. “Taxavam-no como um direitista latifundiário. Porém, bastou uma carta e o padre mostrou-se aberto”. Assim, a celebração foi realizada no dia 30 de março, na Catedral da Sé, ministrada pelo próprio Dom Paulo e contou com a presença de mais de 3 mil estudantes.
A liturgia foi um ato pacífico e inaugurou um mártir. Até aquele instante, conta Sérgio, a luta política era algo restrito aos heróis, dispostos a morrer em combate. Com a morte de Vannucchi, ficou provado como sujeitos comuns poderiam, juntos, realizar grandes atos. “Alexandre marcou a história, não pela vida e individualidade, mas por sua morte não ter ficado em vão. Os 3 mil na Catedral jogaram luz a Vannucchi, uma luz acesa até hoje”.
Familiares presos, um contato com a Aliança Libertadora Nacional (ALN), experiência no centro acadêmico e críticas à construção da Transamazônica fizeram parte do processo de conscientização política de Alexandre — o “minhoca” para colegas. Sempre participativo nos eventos da faculdade, ele morreu como algo que não era: clandestino.
Após a sua morte, em 1976, o DCE (Diretório Central dos Estudantes) da USP foi reorganizado e renomeado, com a adição do termo ‘livre’ e o nome de Alexandre Vannuchi. Um espaço de resistência, que se propunha a denunciar o horror da ditadura. A vereadora Luna Zarattini (PT) sintetiza a importância de se preservar essa luta na memória: “A lembrança é um dispositivo de construção do futuro. Recordar da ditadura é fundamental para não repetirmos a história”.
Ulisses Vakirtzis, diretor da EMEF Alexandre Vannuchi, acrescenta outro aspecto da memória de Vannuchi: “Procuramos utilizar a imagem dele como patrono da escola. Visamos desmistificar as mentiras propagadas pelo governo na época da ditadura. Tratamos do quão relevante é a luta social. Exaltamos sua característica estudiosa, como um aluno exemplar”.
Frente ao atual cenário político, Gomes aponta uma crítica à mobilização estudantil: “Os gregos diziam que é do espanto que vem a curiosidade, e da curiosidade o conhecimento; falta espanto e perplexidade com a atual conjuntura — pandêmica, política e social — por parte dos movimentos estudantis”. A gestão atual do DCE, por outro lado, tem uma concepção diferente. Embora a luta contemporânea seja desafiadora, na visão do Daniel Lustosa, da chapa ‘É tudo pra Ontem’, há conquistas, como as bolsas e os auxílios de permanência. “A categoria dos estudantes na USP tem uma organização enraizada com centros acadêmicos. A tendência é mantermos uma boa relação com as entidades de base, pois apenas o DCE não é suficiente para suprir toda a necessidade”.