Impunidade fere direitos humanos

Aos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promotora acredita que ainda há problemas em seu cumprimento
Formada na USP, Fernanda Leão é promotora de Justiça (foto: Ana Carolina Prado)
Formada na USP, Fernanda Leão é promotora de Justiça (foto: Ana Carolina Prado)

Promotora de Justiça, formada em Direito pela São Francisco, Fernanda Leão é especialista em direitos humanos. Compôs o Grupo Especial de Inclusão Social do Ministério Público do Estado de São Paulo. “Eu protegia os vários segmentos sociais para garantir seu acesso à educação, saúde, cultura”. Em entrevista ao Jornal do Campus, ela falou sobre os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) a serem completados em dezembro de 2008, dos problemas ainda existentes e de divergências entre os pontos da Declaração e a Constituição das Nações.

Jornal do Campus: Como promotora de justiça e especialista em direitos humanos, sua relação com a Declaração Universal dos Direitos Humanos é diferente?
Fernanda Leão: De forma alguma! Como promotora, sou uma agente do Estado e a minha ferramenta política é, basicamente, a Constituição Federal de 1988, sendo que ela incorporou todos os direitos da Declaração, ou partiu dela. Mas estamos todos na mesma posição em relação a Declaração, afinal ela contempla a todos da mesma maneira.

JC: São 60 anos de DUDH. O que fica de mais importante?
FL: Fica o ser humano. Ela nos protege como o bem mais precioso que podemos imaginar, reconhecendo o homem enquanto tal. Parece lugar-comum, mas não há como ser diferente. Os direitos humanos são construções históricas e vieram com os ideais iluministas e movimentos revolucionários liberais do século XVIII. Eles surgem já no nascimento dos Estados Modernos, a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa. Os direitos humanos rompem com a concepção do Direito enquanto dependente da inserção do indivíduo no Estado. Na verdade eles ultrapassam estas concepções e dizem que os homens são o que são, independentemente da cidadania e do Estado do qual eles façam parte. Então firmam-se direitos que devem ser universais.

JC: Em um relatório anual, a Anistia Internacional diz que foram “60 anos de fracasso” da Declaração.
FL: O grande desafio hoje não é como reconhecer direitos humanos, mas como eles serão cumpridos. É disso que a Anistia Internacional está falando no relatório. Outro grande problema é a composição dos organismos internacionais responsáveis pela verificação dos direitos, como a ONU. Os Estados Unidos são um exemplo de país que assina contratos de direitos humanos e os desrespeita por interesses nacionais e econômicos.

JC: E quanto às críticas de que os direitos “universais” seriam apenas ocidentais?
FL: A DUDH ainda é muito ocidental. Mas é importante lembrar que ela é apenas um marco, fruto de acontecimentos anteriores e posteriores, como os tratados e convenções firmados a partir de então. E os direitos progridem até hoje. Basicamente são três momentos históricos. O primeiro na Revolução Francesa, enquanto falava-se em direitos universais, em um contexto de ruptura com o absolutismo. Aí sim muito ocidentais e, mais ainda, eurocêntricos. Depois, com o socialismo, começou-se a pensar em direitos sociais, como direito à educação, ao trabalho, à saúde. Entram muito as questões do mercado e condições socioeconômicas para exercer estes direitos. No terceiro momento se fala em direitos da humanidade, de certos grupos étnicos, direito ao meio ambiente, entre outros. É uma etapa de internacionalização dos direitos que teve ensejo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, no pós-Segunda Guerra Mundial, também como uma reação ao nazismo.

JC: Qual a situação dos apátridas hoje?
FL: Essa é uma questão de grande relevância dentro dos direitos humanos e um problema porque, apesar do indivíduo ter direitos independentemente do Estado em que vive, como garanti-los se o mundo hoje é dividido em Estados? É aí que surgem as críticas ao ocidentalismo da declaração e isso é incontestável. No entanto, o problema é o seguinte: qual é a outra opção, então? Afinal, dentro dos direitos humanos as pluralidades são conservadas e respeitadas também.

JC: Como os países concordam em aceitar a declaração?
FL: Isso também é um problema. Os Estados membros da ONU firmam acordo em reconhecer os direitos humanos e os de grupos específicos – como dos povos indígenas – e cabe a cada Estado incorporar essas previsões internacionais em sua legislação. Quando o representante de um determinado Estado assina um contrato em reconhecer os direitos humanos, eventualmente o seu país tem um aparato jurídico compatível com aquele texto, mas nem sempre. Então o problema é como obrigar os Estados a fazer valer, dentro da sua Constituição, aquilo que ele combinou no plano internacional. O Brasil, com a sua Constituição Federal, tem como fazer valer esses direitos, o que não quer dizer que não haja, por exemplo, prática de tortura, um dos exemplos mais significativos de violação à Declaração.

JC: Segundo relatório da organização internacional Human Rights Watch, a impunidade segue sendo o principal combustível das violações aos direitos humanos no Brasil…
FL: Quando se fala no Brasil, um país de expressiva concentração de renda, impunidade é a resposta que o Estado dá em termos punitivos, que é uma para as camadas sociais menos favorecidas e outra para as mais favorecidas. Isso implica um quadro de impunidade e, sem dúvida, o Estado deveria dar a mesma resposta para todos, pois implica em um dos princípios dos direitos humanos que é a igualdade.

JC: E o que pode ser feito nesse sentido?
FL: Só a Justiça não irá resolver. Em relação aos direitos humanos, estarmos sempre discutindo, por mais incipiente que possa parecer, já é ajudar. É uma responsabilidade da sociedade, de todos nós. E claro que principalmente dos nossos governantes. São necessárias políticas públicas decentes, investimentos públicos, melhorar a educação e os três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário agirem junto à sociedade civil.

JC: Questões como aborto e eutanásia continuam em aberto na Declaração?
FL: Sim. A grande característica dos direitos humanos é sempre abrir, cada vez mais, pois a humanidade se modifica no curso da história. Nós temos hoje, por exemplo, uma grande fase de revolução tecnológica, então as reivindicações de existência digna do ser humano serão outras.

JC: Em relação à educação, a DUDH diz que o ensino superior deve ser baseado no mérito. A USP, dentro do contexto de exclusão social…
FL: Está falando de cotas? Eu sou a favor das cotas. Quando trabalhei junto ao Ministério Público com o Grupo Especial de Inclusão Social, nós tentávamos compelir a Universidade de São Paulo a reconhecer a política de ações afirmativas nos vestibulares. Já existe o Inclusp (Programa de Inclusão Social da USP), mas o efeito no acesso de pessoas necessitadas ainda não é muito significativo. Precisaria aprimorar o sistema de favorecimento, pois não irá atrapalhar a excelência, o mérito da faculdade. É um paliativo, o ideal seria que o Ensino Médio fosse bom para que o aluno concorresse em condições de igualdade no vestibular da USP. O problema é que a dicotomia é enorme. Enquanto isso não acontece, e é uma discussão de mais de vinte anos, as universidades públicas devem fazer alguma coisa para pelo menos diminuir esse quadro perverso de exclusão social.

JC: Para você, como a sociedade brasileira se posiciona diante dos 60 anos de DUDH em ano de eleição?
FL: O mecanismo representativo do voto precisaria ser aprimorado com outros para que pudéssemos usufruir um verdadeiro contexto democrático. Votar é o básico. A sociedade precisa de educação para não negociar seu voto, pois estará negociando a si própria. As pessoas precisam voltar a votar com consciência, com responsabilidade e com o sentimento de responsabilidade de que quem governa o país é o próprio povo. Nesse processo será preciso consciência da própria cidadania e dos seus direitos.