Marcado por denúncias, Show Medicina ainda divide opiniões

Grupo teatral foi objeto da CPI dos Trotes em 2015 e teve espetáculo considerado preconceituoso por coletivos em 2021. Entidade pediu retirada da entrevista ao JC

Por Lorena Corona e Mariana Krunfli

Foto: Reprodução/Youtube

“Existe uma diferença muito grande de postura entre as diferentes turmas da faculdade. Os ingressantes de 2021 são muito contrários ao Show, já as turmas posteriores tendem a ser muito mais tolerantes”

Membro da diretoria do Núcleo de Estudos de Gênero, Saúde e Sexualidade (NEGSS)

É um grupo de teatro, mas sua trajetória acabou marcada por denúncias e até uma CPI. Entre 2014 e 2015, o Show Medicina, entidade artística da FMUSP, foi alvo de acusações de abusos sexuais, discriminação e até castigos físicos. As ocorrências chegaram a ser investigadas em uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia Legislativa. Alunos da FMUSP ainda apontam problemas, apresentando a gravação do Show de 2021 como evidência de machismo, capacitismo e preconceitos contra minorias. A entidade respondeu ao JC, mas depois pediu a retirada das declarações.

Em 2015, em uma das audiências da Comissão, cinco ex-alunos da FMUSP relataram o método de ingresso no Show – era necessário fazer um tipo de “vestibular” para entrar na entidade. Os calouros eram obrigados a ficar nus em frente a dezenas de pessoas e até a simular estupro. Um dos depoentes também falou sobre outros trotes que os veteranos do Show aplicavam nos novatos, como encenar posições sexuais, passar gelo nas genitais e beber até passar mal. 

Outra questão dizia respeito à segregação de gênero. As mulheres eram proibidas de participar das apresentações do Show e eram permitidas apenas participar do grupo denominado “Costura”, hoje extinto. Nele, as participantes eram responsáveis por confeccionar os figurinos que seriam usados nos espetáculos. 

Depois das investigações, o Ministério Público Federal pediu que o grupo eliminasse a prática dos trotes e divisão por gênero. Também recomendou proibir a realização de ensaios, apresentações e divulgação do Show nos espaços da FMUSP. 

Em 2022, a Associação de Antigos Alunos da Faculdade de Medicina da USP (AAAFMUSP) postou uma nota se posicionando a favor do retorno do Show às dependências da Faculdade, dizendo “acompanhar de perto os avanços” do grupo em relação às denúncias.

A proposta enfrentou resistência dos coletivos LBTQIAP+, feminista e negro da FMUSP e do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC). Em agosto de 2022, as entidades organizaram uma reunião sobre o tema no teatro da Faculdade e uma votação via formulário sobre a iniciativa. Entre as 585 respostas válidas de estudantes de Medicina, 406 (69,4%) se mostraram contra o retorno.

HUMOR PRECONCEITUOSO 

Em 2021, por conta da pandemia, a 79ª edição do Show Medicina foi gravada e transmitida no YouTube. A gravação, que permanece publicada até o fechamento desta edição no canal Juicebox, registra 1,2 mil visualizações. Nas três horas do espetáculo, colocações machistas, gordofóbicas, xenofóbicas e capacitistas vem dos atores e da própria plateia.

Um aluno da FMUSP que preferiu não ser identificado por medo de represálias repassou ao Jornal do Campus uma minutagem dos trechos considerados problemáticos. São mais de 40 passagens, com descrições como: “enquanto meninas limpam o palco, há gritos de ‘faz cara de vagabunda’, ‘faz cara de safada’”; “paródia com o trecho ‘o japonês autista no meu pé’”; “plateia arremessando latas de cerveja duas vezes em mulheres”. A íntegra do Show de 2021 e a minutagem estão no final da reportagem. “Sou completamente contra o Show Medicina”, diz o aluno. 

Apesar de destacar que a Diretoria da FMUSP segue à risca a determinação do Ministério Público de que o Show não pode mais se apresentar e ensaiar nas dependências da faculdade, o aluno argumenta que não existe uma separação nítida do evento com a instituição. “No quarto andar da faculdade, onde sai o elevador, tem uma placa em homenagem aos 75 anos do Show Medicina”.

Um membro da diretoria do Núcleo de Estudos de Gênero, Saúde e Sexualidade (NEGSS) considera a 79ª edição do Show – a de 2021 – um momento decisivo. “Todas essas passagens [da apresentação] merecem nossa atenção e repúdio. [A edição de] 2021 talvez seja o ponto de corte mais importante da história recente do Show marcado por intensas crises internas”.

O mesmo aluno destaca que a inclusão da participação feminina, o cancelamento do “Vestibular” do Show e o ingresso de calouros pós-política de cotas da USP tem tornado o ambiente da entidade “mais adequado e crítico aos graves erros do passado”.

O jovem também comentou sobre a percepção dos estudantes em relação ao grupo teatral. “Existe uma diferença muito grande de postura entre as diferentes turmas da faculdade. A 109 [ingressantes de 2021], por exemplo, é sabidamente muito contrária e chegou até a impedir que membros do Show participassem de outras extensões da faculdade. As turmas posteriores [110 e 111, ingressantes em 2022 e 2023] tendem a ser muito mais tolerantes”, disse o integrante do NEGSS.

Entre 27 de novembro e 6 de dezembro, o JC tentou contatar a direção da FMUSP via e-mail da assessoria de imprensa e setor de comunicação. Apesar das diversas tentativas, até o fechamento desta edição, não obtivemos retorno.


Procurado inicialmente pelo JC na segunda semana de novembro, o Show Medicina respondeu às dúvidas preliminares por intermédio de um diretor, que pediu anonimato e requisitou a leitura prévia do material antes da publicação. Conforme seus procedimentos, o Jornal enviou os trechos em que as falas do entrevistado foram incluídas. Após a leitura, o diretor pediu acréscimos e autorizou a publicação. No dia 6 de dezembro, o JC teve acesso à apresentação da 79ª edição, realizada em 2021. Na mesma data, a equipe pediu que o diretor comentasse os trechos destacados na reportagem. Ele, então, pediu a retirada de todas as declarações do texto. O Jornal do Campus registra o dever ético e técnico de consultar todos os atores envolvidos nos fatos que cobre, entendendo que participar do relato seja uma prerrogativa de cada entrevistado.

O vídeo da edição de 2021 do Show Medicina pode ser acessado pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=bhJB-nBkEUA

A minutagem, enviada por uma fonte estudantil ao JC, foi mantida em seu formato original, omitidas as indicações em que os autores ou a equipe do Jornal consideraram imprecisas.

-5:40 – Após o término de uma cena de barbearia, há múltiplos gritos de “calouros!” e “calouros, limpar o palco!”-6:50 a 7:00 – Enquanto meninas limpam o palco, há gritos de “machistas!”, “cadê os calouros”, “faz cara de vagabunda!” e “safada” -7:27 – A plateia joga uma latinha de cerveja em uma das meninas que estão limpando -11:10 Há gritos de “sai daí, você é um bosta, ninguém te chamou, você é um bosta!”-13:41 – Jogam uma latinha de cerveja na ÚNICA mulher no palco -13:45 É dito “todo mundo sabe, em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”-17:30 Simulação de sexo ao desengasgar o personagem do Lineu.-23:09 Aluno “bate” em outra aluna após ela ter “batido” nele 3 vezes durante a atuação.-25:50 um dos únicos gays do show é colocado pra fazer um personagem cuja única “graça” é ele ser afeminado-32:23 piada gordofóbica em que um dos atores fala “calouros calouros” e eles vão e tem que tentar levantar um personagem rato mais gordo e “sofrem” com isso-32:43 piada gordofóbica com o mesmo personagem-30:00 a 34:20: esquete com personagem parodiando a Ana Tanuri (chamar os alunos de Miracídios)- 35:57: “Malícia, de novo pegando procedimento de interno?” → Referenciando à 4º anista do ano passado Alícia.-36:20 piada homofóbica “Doutor Gaytor”-37:48 piada gordofóbica, chama o paciente de “macrossômico”-40:36 esquete zoando a Lúcia Garcia -44:13 piada zoando o Felipe Scalisa: “eu vou chamar ele que FISCALIZA” e todo mundo começa a gritar “NÃO”, “ELE NÃO”, vaiam, “filho da puta a gente foi pra CPI por conta disso seu merda”, “homofobia” e todos riem-44:52 esquete zoando o piriquito (Arnaldo Lichtenstein) e a lúcia “equipe da clínica para sempre atrapalhando a graduação” … 49:25 “cancelaremos o semestre cirúrgico e mandaremos no futuro de todos os alunos” … 49:35 uma personagem aluna aparece “6 anos de bioética (estapeia a lúcia e o piriquito) eu quero meu CRM” 59:02 piada gordofóbica “no plantinho eu vou faltar, ninguém vai cobrir a gente, nem o Mike vai salvar” e fazem gesto apontando para a barriga59:40 fazem esquete zoando paciente pós trauma de colisão “a prancha e o colar no cabeção, mesmo com O2 dessatura sim, não é breja mas é sim litrão, a mão no peito decortica então, o olho preto igual um guaxinim, NC não tem discussão, já virou um grande batatão” “passar a sonda no tchutchucão, pratica o toque no tchuchucão, até central eu vou passar sim, procedimento no tchutchucão’

HORA 2
01:02:59 “ah, senta lá, tim maia” um personagem grita para outro vestido com um peruca “black power”01:03:18 “ah mas a outra panela: os Largados e Recalcados” → Referência à panela Largados e panelados01:06:29 um dos atores asiáticos diz uma frase em japonês e todos riem01:08:41 cena ridicularizando uma aluna em alusão a um episódio ocorrido com ela chamando ela de piranha01:14:22 Durante uma paródia um dos versos denota preconceito contra a população amarela e contra o TEA “o japonês autista no meu pé” 01:14:25 xenofobia: “retirante que veio ser feliz”01:15:00 Nessa cena 3 atores formam os símbolos de XXI e é citado o verso “é muito cromossomo pode crer” demonstrando um preconceito contra a população com síndrome de down1:28 Fazem piadas com virgens e pessoas com neoplasias
HORA 3
2:11:35: Racismo (Indigena)  Chapéu imitando e ridicularizando um cocar indígena junto com fantasia indígena na metade do corpo e pinturas. – É o cara que “rege” o coral que está usando a fantasia. 
2:14:22: Dois homens fazendo o papel de romeu e julieta. A plateia inteira gritando pra eles se beijarem. Fingem um beijo falso ridicularizando.2:16:56 Verso da música “vejo homens nus e também algumas tetas”
2:36:49: trecho da música “eu precisa de uma diversão/porém o pastor disse/buraco aqui de trás é só pra excreção/ porque é pecado se isso me dá tesão/objeto no reto/objeto no reto””como que chega isso no meu plantão? Se fosse fecaloma tava tudo certo” Plateia e atores riem bastante enquanto cantam esse trecho. 
Música inteira extremamente problemática e homofóbica em seu conteúdo completo


2:42:40: Ridicularizando pacientes psiquiátricos do IPq. “E na cabeça vai eletrodos/ será que esse ED(?) é meu fim?/ Mesmo com choque não tô mansinho/ isso daqui não é manicômio/ No HD (Hospital Dia) eles me entretém/ e por vezes pintando/ EXCRETAS/ só passo em você meu neném/Por que você não acerta o meu nome? Eu já te falei que é Jesus/ Mais uma vez Aldol na picanha (cantores indicam aplicação na perna)/Da clozapina aposto Dr que me cuida (?) (…)”  

2:53:15: colocaram duas mulheres pra ficar brigando em frente a cortina. colocando sempre as mulheres em papeis secundários e vexatórios. colocam o bernardo de cueca para ficar meio que separando a briga. Depois ele bate fraco nelas e elas batem nele “A interna que bate bate, a interna que já bateu”Aos fundos gritos de Machista, Opressor ridicularizando 3:00:30; mais uma vez um homem interpretando uma mulher. Raramente colocam elas para atuarem. 
Sempre acham muito engraçada a ideia dos homens vestidos de mulher. Além de ser algo machista e desrespeitoso, é transfóbico e reforça esteriótipos de gênero. 3:04:50: Capacitismo. Mostra no video um integrante colocando uma lâmina no microscópio e quando mostra o que esta na lamina lê-se “47 XY + 21” fazendo mais uma referencia a piadas relativas a pessoas com Sindrome de Down (dentre outras ja presentes no mesmo Show)3:06;32: mostra no vídeo um integrante acesdendo e apontando fogos de artificio em um outro integrante enquanto esse bebe. Acerta ele algumas vezes. 3:09:12; mostra no video os integrantes bebendo horrores dentro da MUM.3:11:09: uma menina estourando tipo um foguete nas costas de um cara.

Ao longo de todo o “encerramento do Sexto” observa-se placa ao fundo escrito “Vencedores de 6 Shows” e “Onde os fracos não possuem vez”
ALCOOL AO LONGO DE TODA APRESENTAÇÃOAlém de estarem sempre consumindo alcool ao longo de todos os quadros e tanto a plateia quanto os atores encontrarem-se alcolizados durante a apresentação, o palco ainda encontra-se cheio de lixo de latas e bebidas, que inclusive os atores ficam jogando uns nos outros em alguns momentos (como é possível ver em 3:00:00). Inclusive até sendo jogadas latinhas nos apresentadores por pessoas na plateia (3:01:00).