Debate: exame único para as universidades

Especialistas da USP discutem a proposta de mudança do Enem, que, segundo o Ministério da Educação (MEC), serviria para unificar os vestibulares de universidades federais, atuando como diretriz educacional para as instituições de Ensino Médio

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“Novo” Enem uniformiza, mas quem são os beneficiados? – por César A. Minto
Mudanças são necessárias para exame único funcionar – por Wilson Mesquita de Almeida


“Novo” Enem uniformiza, mas quem são os beneficiados?

por César A. Minto

Em março passado, o Ministério da Educação (MEC) propôs adotar o Exame Nacional do Ensino Médio modificado (“novo” Enem) como forma de prover a seleção unificada para todas as 55 Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) existentes no país. Alega-se que tal vestibular exigiria “mais capacidade analítica” dos candidatos e “induziria um redirecionamento” do ensino médio.

A proposta parece interessante, mas é preciso tempo para que se instale uma ampla discussão pública e sejam avaliados seus eventuais prós e contras. E a definição de qualquer proposta não deve ferir a autonomia universitária.

Um primeiro questionamento refere-se ao uso dos atuais exames nacionais (modificados ou não) para “avaliar” estudantes, sem considerar, de fato, a estrutura e o funcionamento de suas escolas de origem e as condições que estas propiciam, tanto aos estudantes quanto aos que nelas trabalham. Por exemplo, nas escolas estaduais paulistas de ensino médio é muito raro ter biblioteca e laboratórios bem equipados e em funcionamento, e isso interfere na qualidade da escolarização dos estudantes e, portanto, em sua chance de ingresso no ensino superior. Algo semelhante pode ser dito da relação estudantes/docente, da existência ou não de material didático adequado, de equipamentos técnicos e tecnológicos à disposição etc. Essa desconsideração faz com que tais exames apenas revelem uma “foto instantânea” do desempenho do candidato em situação particular e datada. Isso continuará?

Um segundo questionamento diz respeito à capacidade de o “novo” Enem aferir maior capacidade analítica e, ao mesmo tempo, comprovação de domínio de conteúdos em língua portuguesa, matemática, ciências naturais e ciências humanas e, ademais, desempenho dissertativo! Se sim, o vestibular proposto teria como pretenso mérito uniformizar as condições de acesso às Ifes em todo o país. Ainda assim, caberia questionar quem seria, de fato, “beneficiado” pela adoção dessa alternativa, suas condições sócio-econômicas, de migração efetiva etc. E não ignoramos que se acena com as ações do Plano Nacional de Assistência Estudantil para garantir a mobilidade pretendida. Mas, afinal, essa ampla mobilidade é necessária?

Em conjunto com os dois anteriores, um terceiro questionamento refere-se ao fato de aparentemente ignorar a perspectiva de garantir a todos – os que queiram – o direito de ter acesso à educação superior pública (no caso, às Ifes). Isso é preocupante, pois contribuiria para reforçar o mito do fracasso individual, nas situações de não aprovação no “novo” Enem.

Ademais, tal reformulação camuflaria as reais condições de desigualdade social, econômica e educacional a que está submetida parcela significativa da população brasileira, também pela sua origem regional, étnica, de gênero etc.

Concluindo, é necessário ampliar progressivamente as IES públicas (a adoção do ProUni mostra o contrário…), começando, por exemplo, pela durrubada dos vetos de FHC à Lei nº 10.172/2001 (Plano Nacional de Educação – PNE) e por isentar a área do mecanismo da DRU. Tais medidas permitiriam mais recursos para essa ampliação, tanto em nível federal, como estadual. Por outro lado, também é preciso valorizar as profissões que requeiram apenas formação escolar de nivel médio, o que poderia amenizar a demanda (real ou induzida…) por educação superior pública.

César A. Minto é primeiro vice-presidente da Associação de Docentes da USP (Adusp).
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Mudanças são necessárias para exame único funcionar

por Wilson Mesquita de Almeida

Entendo que o projeto, ainda muito incipiente e pouco detalhado, possui pontos positivos que devem ser considerados. Entretanto, se não for acompanhado de ponderações e revisões, tende a perder seu sentido. Um aspecto positivo da unificação contempla, de uma só vez, vantagem em duas dimensões: econômica e psicológica. Sabemos que os gastos envolvidos nas inscrições, viagens e hospedagens de vestibulandos das universidades públicas, muitas vezes configuram-se como elemento impeditivo para indivíduos de baixa renda. O movimento de isenções das taxas de vestibulares deve sua origem a essa ocorrência.

Além disso, devido à enxurrada de exames com datas e locais distintos, existe o absurdo de empresa especializada em cuidar desses trâmites. Nem é preciso dizer quais alunos tem acesso a esse serviço de “guia”. Um só concurso também poderia atenuar o desgaste físico e mental do candidato que se submete a inúmeras provas, muitas realizadas em vários dias. Porém, o ganho com essas dimensões é pequeno se não vier acompanhado da questão mais substantiva: um exame nacional diferenciado do existente.

O Enem no seu formato atual, mesmo que com mais questões, pode não dar conta dos imensos desafios do acesso. Sua proposta inicial era orientar em termos de conteúdo o ensino médio. Decorridos 10 anos de sua criação, passou a servir como modelo alternativo de vestibular. E a coisa se complica quando o MEC, tomando a parte pelo todo, tenta passar a imagem de que o “… vestibular é só memorização” e tratar o Enem como milagroso. É necessário desconfiar dessa idéia bem disseminada e igualmente equivocada de que “o vestibular mede somente a capacidade de fazer vestibular”. Isso despreza a evolução dos métodos adotados para seleção no ensino superior e experiências inovadoras presentes em algumas universidades públicas.

Sabemos, há anos, o essencial: uma reforma profunda nos conteúdos das provas, marcadas por um acúmulo de tópicos insignificantes jamais retomados ao longo da vida das pessoas. Em decorrência, há a necessidade de um Enem mais robusto, pois embora seja inovador, sua capacidade de discernir níveis de candidatos é fraca quando comparada a outras seleções existentes que também cobram mais raciocínio em vez de pegadinhas e decorebas. O exame de hoje deveria ser obrigatório para todas as universidades privadas de cunho lucrativo que fazem pseudo-seleções.

Nota-se que voltamos sempre para a questão estrutural: melhoria do ensino público e particular do país. O eterno retorno: se não mexo na base, não adianta mexer na forma como seleciono no topo, pois as desigualdades permanecem ou, em alguns casos, se aprofundam. Entretanto, se bem articulada com as universidades federais – que devem ter uma participação ativa e autônoma – a proposta até pode se desenvolver de forma sólida. Aqui entra o conjuntural, que deve também ser feito, pois a forma como se efetiva a seleção também interfere.

Wilson Mesquita de Almeida é doutorando em Sociologia pela Pós-graduação da USP.
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