Estágio: obrigatório ou não?

Segundo o Artigo 2º da Lei do Estágio, este poderá ser obrigatório ou não, conforme o projeto pedagógico do curso. O estágio é uma forma de o estudante entrar no mercado de trabalho e adquirir experiências necessárias para sua vida profissional. Mas muitos se vêem obrigados a deixar o curso de lado devido às exigências do cargo que ocupam. Trata-se de uma discussão complexa, que afeta diretamente os alunos da USP e possui argumentos que abrangem diversos pontos de vista
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“Considero o estágio tão importante e imprescindível quanto disciplinas obrigatórias” – entrevista com Fábio Mariz Gonçalvez, Presidente da Comissão de Graduação da FAU-USP

“Podemos dizer que a obrigatoriedade não acrescenta em nada”  – entrevista com Jorge Luiz de Biazzi, Vice-Coordenador da Graduação do Departamento de Administração da FEA-USP


Considero o estágio tão necessário e imprescindível quanto disciplinas obrigatória

Fábio Mariz Gonçalvez é presidente da Comissão de Graduação da FAU-USP

Jornal do Campus: Qual a sua opinião quanto ao caráter obrigatório do estágio?
Fábio Mariz Gonçalves: Não vejo qualquer problema quanto ao caráter obrigatório do estágio. As disciplinas obrigatórias são aquelas que são consideradas imprescindíveis para que o aluno esteja preparado para exercer seu ofício. Considero o estágio tão necessário, tão imprescindível quanto estas disciplinas. Ter contato com a prática real e cotidiana do ofício altera a maneira do estudante lidar com os conteúdos das disciplinas que cursa na graduação, altera positivamente seu entendimento da profissão.

JC: Quais as vantagens do estágio obrigatório para os alunos?
FMG: O conhecimento que o aluno recebe na faculdade não é necessariamente o mesmo que será cobrado a apresentar quando procurar o primeiro emprego. Existe toda uma séria de habilidades que são desenvolvidas na prática cotidiana do ofício que apenas os estágios oferecem. Outro aspecto a considerar é que o ingresso no mercado depende da rede de contatos e vínculos que cada um constrói. O estágio é um dos modos de conhecer empresas e profissionais e de se dar a conhecer. Na área da arquitetura os contatos profissionais são fundamentais para abrir as portas do mercado de trabalho.

JC: Normalmente, qual é a resposta dos alunos quanto ao caráter obrigatório do estágio?
FMG: Existem diferentes respostas. Alguns talvez por entender que o estágio é um modo de exploração, ou pelo receio de não se sair bem, ou não encontrar bons estágios reagem negativamente à obrigatoriedade. Outros, especialmente os que já fizeram aceitam e confirmam a importância.
Vale ressaltar que é estágio mesmo o trabalho desenvolvido junto aos órgãos públicos ou às faculdades, na USP. Na arquitetura existem tantos campos de atuação profissional que é inevitável a extrema diversidade de tipos e modalidades de estágios.
Fato é que o MEC e os órgãos de regulação profissional como o CREA estabelecem a obrigatoriedade, com argumentos e razões bastante coerentes. A recusa carece de viabilidade, de argumentos consistentes e parece uma vontade de alienação grave se nascida em uma universidade pública.

JC: Quais os conhecimento adquiridos com o estágio?
FMG: Não nego que se aprenda diferentes habilidades nos estágios, isso é desejável e comum. O que destaco é que mais importante do que o que se aprende nos estágios é a mudança do modo de entender e lidar com o que se aprende na faculdade depois de se fazer o estágio. O estágio ajuda o aluno a organizar, hierarquizar, reavaliar, selecionar de modo distinto o que ele aprende na faculdade.
O que o aluno aprender erradamente no estágio, e isso também ocorre, serve para municiar a reflexão e crítica que a faculdade deve construir sobre a prática profissional. Aprender com o estágio é aprender ainda no ambiente acadêmico, portanto com o suporte para elaborar a crítica ao que se faz no trabalho. É verificar através da prática o que ainda deve ser estudado antes de terminar a graduação.

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Podemos dizer que a obrigatoriedade do estágio não acrescenta em nada

Jorge Luiz de Biazzi é vice-coordenador da Graduação do Departamento de Administração da FEA-USP

Jornal do Campus: Qual sua opinião sobre o estágio obrigatório?
Jorge Luiz de Biazzi: A figura do obrigatório é estranha exatamente pelo fato de que se o aluno não conseguir estágio, o que pode acontecer em função das condições da economia, ele acaba não obtendo o diploma. Não que para nossos alunos deva ser um grande problema, pois eles têm encontrado estágio. Mas a questão é mais conceitual do que propriamente prática. Na prática não teria problema, mas conceitualmente é um pouco estranho que seja obrigatório. A faculdade cobra uma coisa que ela não oferece. Temos estágios na FEA, mas são pouquíssimas vagas se considerarmos 210 alunos por ano. Por isso é um problema conceitual para mim, pois é diferente de cobrar o desempenho nas disciplinas, o que é razoável. Antigamente havia uma possibilidade de se fazer uma monografia, que é um estudo específico sobre algum assunto em particular, não necessariamente estando vinculado a alguma empresa. Se eu não me engano, algumas unidades ainda têm essa figura.

JC: A FEA possui essa possibilidade?
JLB: Não vou falar pela FEA, pois a contabilidade e a economia, se eu não me engano, não têm estágio obrigatório. Na Administração tenho certeza que é obrigatório.

JC: O fato do estágio ser obrigatório leva o aluno a situações nas quais ele acaba deixando o curso de lado?
JLB: Com certeza. Isso ocorre muitas vezes muito cedo. É bastante comum alunos do segundo ano já começarem a se preocupar com estágio, o que é certamente um problema. Os alunos acabam achando que é muito mais interessante se dedicarem a subir na carreira na empresa do que se dedicar aos estudos. Começam como estagiários de seguindo ano, depois estagiários de terceiro ano, do quarto ano: essa é a carreira que eles têm lá dentro. Até que, mostrando algum trabalho, um bom desempenho, eles acabam sendo efetivados. Só que com isso eles acabam deixando um pouco de lado a escola.

JC: Isso afeta sua formação profissional?
JLB: Com certeza acaba afetando. Porque eles acabam se dedicando menos aos estudos e alguns até faltam mais do que deveriam, por conta das exigências profissionais.

JC: Você acha que eles são muito cobrados? São como “trabalhadores normais” exceto pelo fato de ganharem menos?
JLB: Com bastante freqüência, é isso o que acaba acontecendo. Esse aluno tem as funções usuais que teria um profissional contratado pela CLT, pela empresa, pagando menos. Com a possibilidade de mandar embora sem ter custos adicionais.

JC: O que aconteceria se houvesse uma reformulação do estágio, para uma função que visasse mais o aprendizado? A obrigatoriedade, mesmo assim, não seria valida?
JLB: Seria até mais complicado. Pois se fosse um estágio no conceito mais adequado, que é aquele que o aluno vai realmente para aprender um pouco mais na empresa, poucas empresas acabariam oferecendo. O que a maioria delas quer é uma mão de obra quase qualificada por um preço mais baixo e bastante conveniente.

JC: Então você acha que não vai ter uma reformulação no estágio no sentido do que seria ideal, como uma ponte entre o trabalho propriamente dito e a faculdade?
JLB: É difícil por que seria difícil cobrar isso das empresas. Teria que haver uma fiscalização do conteúdo do trabalho ao qual os alunos estão submetidos. Seria dificílimo acompanhar o que está acontecendo nas empresas. Isso não representa 100% das empresas. Uma ou outra tem um estágio um pouco mais adequado, no sentido de não usar a mão de obra simplesmente para trabalhos mecânicos.

JC: Mas se a faculdade obriga o estágio ela não tira essa “arma” que o estagiário tem de não se submeter a um regime assim? Por que ele precisa daquilo para se formar.
JLB: Exato. Então o que a empresa ofereceu o aluno aceita, porque ele tem que fazer.

JC: Há algum problema com o número de horas exigidas? Elas exigem que os alunos comecem a estagiar muito cedo?
JLB: Não. Não há exigência de quando vai ser feito o estágio. É sugerido que seja feito no último ano. Se fosse assim, até que seria bem razoável. Mas muitos alunos começam a fazer estágio já no segundo ano.

JC: A FEA pretende ampliar as vagas para estagiários?
JLB: Acho que não. Não temos muito por onde ampliar, até mesmo por que dependemos de verba da reitoria. De qualquer modo, não daria para acomodar todos os 210 alunos que possuímos por ano.

JC: Você acha que o estágio na própria faculdade é mais interessante do que em uma empresa?
JLB: O estágio aqui é mais tranqüilo para os alunos porque eles, pelo menos, não tem que perder tempo se deslocando e conseguem ter mais contato com os professores, colegas e a biblioteca. Mas é certamente um investimento um tanto quanto sem futuro que o aluno faz, porque não existe carreira aqui dentro. É um quebra-galho, um favor que ele faz para o Departamento, para que ele possa exercer algumas funções. Não há um estágio no sentido de aprender muita coisa, ele é mais para atividades usuais no próprio Departamento.

JC: Se o estágio não fosse obrigatório e o aluno optasse por não fazê-lo, você acha que ele conseguiria entrar no mercado de trabalho?
JLB: Eu acho que sim. Porque a maioria iria procurar o estágio no momento em que achasse conveniente. Porque as empresas oferecem estágios, senão para a gente, para estudantes de outras escolas. Então mesmo que não fosse obrigatório, a grande maioria iria procurar. Um ou outro, que tivesse mais uma inclinação acadêmica, de pensar em fazer um mestrado, não se sentiria obrigado a fazer um estágio.

JC: São muitos esses alunos?
JLB: Não, não são. A maioria vai para o mercado mesmo e não para a Academia.

JC: Mas mesmo esses que querem seguir uma carreira acadêmica precisam fazer as  horas de estágio obrigatório?
JLB: Precisam. Esse é outro aspecto negativo da obrigatoriedade. Para os poucos que tem uma inclinação mais acadêmica, a obrigatoriedade do estágio acaba atrapalhando. Mas se eles quiserem fazer só as horas mínimas exigidas, não será assim um grande esforço. Eles não iriam ser prejudicados propriamente por que o estágio, sendo no último ano, prejudica pouco a formação do aluno, porque ele vai estudar normalmente nos primeiros anos.

JC: Quais os problemas com os quais vocês lidam quando se trata de alunos que começam a estagiar muito cedo?
JLB: Muitos alunos querem passar do diurno pro noturno. A gente tem um fluxo muito maior nesse sentido.

JC: Isso esvazia o diurno?
JLB: Não, porque a gente não deixa transferir tudo. Se deixasse, era capaz de chegar no quarto ano e ter metade do original. As turmas do noturno são 20% maiores do que as do diurno. No começo são só 10% acima e depois o pessoal vai migrando. O sujeito começa um estágio, que oficialmente é um estágio de 4 horas, mas a empresa já começa a exigir que informalmente ele fique mais tempo na empresa. É nesse momento que ele pede para ir pro noturno.

JC: Quem não consegue ir para o Noturno causa algum problema?
JLB: Com certeza sim. Tem alguns alunos que se vêem obrigados a levar o curso em mais tempo. Gente que vai “arrastando” o curso, fazendo disciplinas somente quando tem a oportunidade, por que ele não quer sair do trabalho.

JC: Sabemos que muitos estágios, especialmente na área de Administração (como em bancos de investimento) possuem um horário totalmente fora do convencional, com a carga horária se estendendo até de madrugada. Como vocês lidam com esse problema do estágio abusivo?
JLB: O problema é que formalmente ele nunca é abusivo. Eles não colocam no papel que o estágio é abusivo. Na prática, vai saber o que acontece. Formalmente, não podemos fazer nada.

JC: O aluno aceita essas condições, submete-se a isso?
JLB: Submete-se. Aquela história: ele está ganhando alguma coisa, tem a oportunidade de permanecer na empresa, está aprendendo a trabalhar e é obrigatório. O obrigatório tem um peso nessa questão, embora não seja muito grande. Se não fosse obrigatório, poucos alunos acabariam preferindo não fazer o estágio.

JC: Mas você acha que se não fosse obrigatório teria uma decisão um pouco mais pensada? Mais madura?
JLB: Acho que não. As condições de mercado acabam fazendo com que o aluno se comprometa com o estágio. Ele fica com medo de mais para frente perder a vaga de efetivo para alguém que tenha começado mais cedo. Mas o curso diurno tem uma característica. A gente conseguiu formatar o curso para que o aluno fique também durante a tarde, alguns dias da semana. Então isso quase que inviabiliza arrumar estágio para os dois primeiros anos, para o diurno, dificulta bastante. O noturno não, o sujeito tem o dia inteiro. Inclusive, vários trabalham carteira assinada e tudo o mais. Essa é outra situação estranha com o estágio. Mesmo esses profissionais devidamente contratados (muitos deles até já fizeram a faculdade antes, só estão complementando alguma coisa) são obrigados a cumprir com o estágio. Mesmo trabalhando como CLT eles precisariam fazer um estágio. Eles precisam trazer toda a documentação da empresa, provando que são funcionários, e acaba sendo aceito como um estágio. É toda uma burocracia a mais que eles têm que passar.

JC: O estágio obrigatório acaba sendo irracional?
JLB: Para essas pessoas que são contratadas, não tem a menor necessidade. Não tem o menor fundamento. Os outros, que não são contratados, acabam indo para o estágio para aumentar a probabilidade de ter uma chance nas empresas. O estágio poderia não ser obrigatório, em termos práticos não faria tanta diferença para a imensa maioria. Só para aqueles de espírito mais acadêmico, que poderiam pensar em não fazê-lo. Acho que podemos dizer que a obrigatoriedade não acrescenta em nada, pois quem desejaria fazer o estágio o faria de qualquer modo. Ela só atrapalha, obrigando os alunos que não querem seguir por esse caminho a fazê-lo. Penso que seria muito mais útil para a formação dos alunos, ao invés de implantar medidas que obriguem o estágio, justamente criar alguma que o restrinja para os primeiros anos. Mas isso teria que ser bem estudado, para que não impedíssemos de trabalhar um aluno que realmente precisa do dinheiro.

JC: No período noturno vocês têm muito problema com gente que já estagia o dia inteiro desde o primeiro ano?
JLB: Sim, o problema é maior no Noturno, porque não tendo o dia inteiro livre, o tempo que deveria ser ocupado para atividades acadêmicas acaba sendo usado para o emprego. Formalmente eles têm um limite, mas se informalmente eles tem um acordo com a empresa a gente acaba não conseguindo comprovar ou fazer nada.

JC: Todo mundo sabe que estágio é um pouco abusivo. Então quem obriga o estágio acaba confirmando esse regime de exploração?
JLB: Não sei se colocaria assim, pois a CLT também tem limites que em princípio deveriam ser obedecidos e nem sempre são. Então todo mundo pode desvirtuar a lei, mas não é por isso que ela se torna ruim.

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