Quando a literatura vai ao encontro da realidade

Professores da FFLCH falam sobre a tênue divisão entre os mundos criados nos livros e as sociedades que os inspiraram

“Você escalaria Macunaíma na ponta direita do seu time?”, indaga José Miguel Wisnik,

Joca Ramiro (ilustração: Ana Carolina Marques)
Joca Ramiro (ilustração: Ana Carolina Marques)

músico e professor aposentado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), em uma palestra no Sesc Vila Mariana, no dia 1º de setembro. A princípio, a dúvida parece descabida: qualquer transgressão da literatura para o mundo real é detectada como impossível. Porém, tudo fica mais claro quando se sabe que, na verdade, o palestrante fazia uma comparação entre a personagem de Mário de Andrade e o herói da Copa de 58, Garrincha.

De fato, há muitas relações possíveis, como continua Wisnik: “A infância de Garrincha é impressionantemente igual à de Macunaíma: há um certo retardamento, mas ao mesmo tempo extrema versatilidade e precocidade inclusive sexual”. Não era de se espantar a hesitação da comissão técnica em colocar Garrincha em campo, o que ocorreu apenas no terceiro jogo da Copa, como explica o professor: “Ele possuía um excesso lúdico que podia conduzir ao fracasso, mas instantaneamente Garrincha provou-se um ‘herói macunaímico’ do nosso futebol”.

A partir dessa temática, o JC perguntou a professores de Literatura Brasileira da FFLCH sobre possíveis comparações entre nossos clássicos e personagens reais da história do Brasil. Ainda assim, eles ressaltam que é necessária muita cautela diante de tais perguntas: o quanto há de realidade em uma obra artística? O quanto o autor se baseou no real para daí criar um mundo literário?

Arte sem função

Segundo Yudith Rosembaum, professora que atua na interface da Literatura com a Psicanálise, é preciso, inicialmente, esclarecer a isenção da arte com qualquer compromisso factual. “A literatura não é documental, mas transforma os dados da realidade percebida, os quais, ao entrarem no campo do texto, são disfarçados, decompostos”, diz. As possibilidades parecem infinitas, como explica a professora com a citação de Aristóteles: “A literatura é o que poderia ter sido; a história é o que foi”. “Assim, a literatura é mais universal que a própria realidade. Tudo além do que foi é literatura”, completa a professora.

O artista, conclui Yudith, não tem qualquer responsabilidade sobre a correspondência histórica de suas personagens. Ainda assim, a sua produção se deu inserida em certo contexto, e ambos estão estritamente relacionados: “Escrever é uma forma de penetrar no mundo. Um processo revelador para o leitor, mas também para o autor. Vem de uma ânsia de conhecer o mundo”, diz o professor Luiz Dagobert de Aguirra Roncari, também da FFLCH, com ampla pesquisa voltada para as obras de Guimarães Rosa. “Dar concretude a um personagem é não pensar isoladamente, fora do mundo social e histórico”, completa.

Pinheiro Machado (ilustração: Ana Carolina Marques)
Pinheiro Machado (ilustração: Ana Carolina Marques)

Encontrando a realidade

Partindo desse pressuposto, é possível criar alguns paralelos entre figuras literárias e reais da nossa história. O professor Roncari aponta alguns exemplos na obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, na qual é possível identificar no posicionamento político de algumas personagens o seu correspondente na política brasileira da época. “O Joca Ramiro, chefe jagunço que pretende fazer a transição do sertão arcaico para o moderno sem ruptura, respeitando a tradição, se aproxima muito de políticos que buscavam essa maneira de modernização, como o Barão de Rio Branco”, diz. “Zé Bebelo, que buscava a modernização de forma mais impositiva, se aproxima muito de Ruy Barbosa, que pretendia a civilização do Brasil imitando instituições de modelos norte-americanos. E Ricardão e Hermógenes, que eram avessos à modernização e defendiam a manutenção da tradição, se aproximam dos caudilhos da política brasileira da primeira república, como Pinheiro Machado”.

Arte afasta-se do real

Sobre esses paralelos, porém, é preciso extrema cautela, como ressalta a professora Yudith. São exemplos ilustrativos que, em alguns casos, nos ajudam no entendimento de certas obras, porém não devem ser vistos como uma relação unilateral que se estabelece entre as figuras literários e históricas. Sobre isso, a professora indaga: “Eu crio de costas para a realidade ou crio espelhando a realidade? E se for uma cópia, pra que serviria o livro?”. De fato, quando se trata de livros renomados por sua qualidade literária, parece-nos que o mundo ali construído é tão real que cumpre essa função de espelhar o que existe. Mas esse mundo vai muito além desse espelho: “A arte é uma negação da realidade. É o que dialoga com esse real. Destrói-se a realidade, mas se constrói outra, textual, que dialetiza com a realidade factual. E é desse jogo que sai a faísca artística”, conclui a professora.