De Sócrates a dr. Robert: Farah Jorge Farah busca reinserção

O sonho era ser o dr. Robert que enxergava na letra dos Beatles: “My friend works for the National Health” (“meu amigo trabalha para a saúde nacional”). Assim, Farah Jorge Farah decidiu ingressar em Saúde Pública, na USP, e, de alguma forma, dar continuidade à vida que tinha começado como cirurgião plástico – um doutor que está sempre disposto, ajudando qualquer um que necessita. Com pouco mais de 60 anos e após ter passado por três cursos de graduação diferentes, Farah tenta reconstruir seu caminho e buscar um dr. Robert que esteja mais ligado às questões dos idosos.

Para alguém que ficou quatro anos e meio na prisão, os julgamentos alheios e os olhares tortos não são raros, o que não significa que sejam fáceis de lidar. Muito provavelmente por sua idade e também por todas as experiências (e faculdades) pelas quais passou, ele acumula um conhecimento de fato vasto. Admirador de Sócrates e de sua luta pela verdade, por meio do uso da razão, Farah acredita que em muitos momentos a opinião pública, influenciada por poucos, pode punir inocentes o que, para ele, é muito perigoso. Isso parece incomodá-lo demais, sem, contudo, levá-lo a desacreditar completamente das pessoas. “Há muitos colegas e companheiros desta jornada de mente aberta, assim como professores que, se pressionados, certamente farão o uso da razão e não se deixarão levar.”

(Foto: Tainá Shimoda)

A relação com as pessoas não é das coisas mais simples. O ex-médico foi condenado por homicídio, em 2003, motivo pelo qual não é totalmente aceito na faculdade. Farah acredita que isso se deva em grande parte pelo desconhecimento das pessoas em relação às circunstâncias e a tudo que deveras aconteceu. Ele sugere a quem tiver interesse em saber do ocorrido, “sem interferências de opiniões e interpretações”, que leia atentamente as 13 ou 16 volumosas pastas de autos de seu processo, garantindo que assina a autorização para isso. Esse, no entanto, não é o único motivo para a discriminação – o fato dele ser mais velho e ainda estar na faculdade também é uma razão forte.

Apesar de haver mais de uma pessoa com idade acima ou igual a 60 anos em seu curso, o preconceito existe. Farah não acha, todavia, que essa seja uma situação incomum, pelo contrário. “Nós somos discriminadores e achamos que nossa opinião é o máximo do imperativo absoluto, sem perceber que agimos constantemente fazendo projeções de nosso íntimo”. Para ele esse é também o porquê das opiniões tão simplistas e do jornalismo sensacionalista (formador de inúmeras dessas mesmas opiniões) terem tanta repercussão. Como alguém diretamente atingido por tudo isso, Farah vê as tais projeções promovendo identificações e catarse, “o que já era explorado no teatro grego, e o é, hoje, nas novelas, filmes e programas espetaculosos”.

Com tantos cursos e saberes que se complementam, o que Farah Jorge Farah mais questiona (muito embasado na filosofia e no direito) é o julgamento raso que as pessoas fazem pelo pouco que sabem do fato que o envolveu, em 2003, sem considerar as circunstâncias e toda a situação que viveu. “Montesquieu já dizia que cada caso deve ser devidamente analisado em sua específica circunstância e, mais recentemente, Ortega y Gasset mostrou que ‘o homem é ele e sua circunstância’’’. Curioso e, em alguma instância, “multidisciplinar”, Farah, ainda assim, encontra nos estudos uma oportunidade de conviver com algumas pessoas para ele “despidas de preconceitos e vícios de pensamentos”.

A reinserção na sociedade não é fácil. Há alguns pontos importantes do sistema penitenciário que Farah avalia tanto como alguém que vivenciou a experiência de estar lá, quanto de um estudante de direito (como já foi uma vez). De forma alguma ele acha que as cadeias previnem crimes ou ajudam no processo de preparo para a volta da pessoa à sociedade.

“Na prevenção de crimes, precisaríamos rediscutir as relações sociais, raciocinar mais amplamente, questionar a concessão de poderes”. A ideia é complementada com a referência à visão de Paul Singer em relação às cadeias cheias de que elas simplesmente dão a sensação de segurança, assim como o modelo assistencialista de hospitais e postos de atendimento dá a sensação de excelência de produção de saúde.

Em busca de compreender melhor as questões de direito e por ter vivido situações, de acordo com ele, de “desrespeito e violação de princípios básicos”, Farah embrenhou-se pelo mundo das leis. E isso foi algo que o interessou em demasia. Mas o que ele resolveu continuar na graduação foi aquilo que o levaria, de algum modo, ao dr. Robert. Primeiro com a gerontologia e atualmente com Saúde Pública, a ideia de fazer algo pelos idosos é o que mais permanece. E seus pais são a explicação para isso. “O apego aos meus pais e a antiga dedicação aos idosos – em quem vejo meu pai e minha mãe – me levaram a prestar vestibular para gerontologia”. A vontade de transferir para os velhinhos o cuidado que teve dos pais é algo ainda forte.

Se concluirá sua trajetória de dr. Robert, não é possível saber. A área de Saúde Pública, como ele mesmo frisa, é muito ampla e, de qualquer forma, conseguir emprego, tendo sido condenado é realmente difícil. Ademais, sua saúde não está nas melhores condições. Ele não sabe se há grandes perspectivas para o futuro, mas continua seguindo, com o conhecimento já conquistado. Ele também reconhece que não é das tarefas mais simples que as pessoas o aceitem e o vejam como um alguém tão humano quantos elas, porém defende essa possibilidade.