Brasiliana, reino de mil facetas secretas e raras

Após seis anos em construção, biblioteca se prepara para ser inaugurada e receber os amantes e pesquisadores de livros

As mãos quase infantis percorrem fileiras de livros usados, as pontas dos dedos delineam os altos relevos dos inúmeros volumes aglomerados. Aos 16 anos, o coração de José Ephim Mindlin acelera ante ao mistério do primeiro de muitos raros exemplares que seriam adquiridos. Passados 80 anos, o acervo de raridades deixou a aconchegante residência Mindlin para repousar em seu relicário definitivo no coração da Universidade de São Paulo.

No próximo dia 23 de Março, às quatro da tarde, os amantes dos livros poderão desfrutar de um novo santuário, o espaço batizado de “Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin” não só abrigará os exemplares ímpares garimpados por Mindlin ao longo de toda sua vida, como também será um ambiente voltado a realização de pesquisas.

“Eu sou um uspiano”, dizia José Mindlin, advogado, empresário e bibliófilo, que via na universidade o ambiente ideal para a criação de uma biblioteca viva. “José Mindlin dizia que não queria doar seu acervo para criar um memorial em sua homenagem, e sim uma biblioteca que crescesse. A biblioteca não seria uma coleção no sentido estrito, mas sim uma oportunidade de reunir pessoas para produzir conhecimento, pesquisas e ativar a cultura”, contou o professor e diretor da Brasiliana USP, Pedro Puntoni.

Há 16 anos, os Mindlin ofertavam sua coleção pela primeira vez à USP e, hoje, graças à articulação de István Jancsó, diretor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), e o investimento financeiro de uma série de instituições como a Fapesp, o BNDES e a Petrobrás, o sonho materializa-se em um complexo de 20 mil metros quadrados no valor de 130 milhões de reais.

Biblioteca Brasiliana conta com mais de 32 mil títulos raros da literatura e humanidades brasileiras (Foto: Luiza Guerra)
Biblioteca Brasiliana conta com mais de 32 mil títulos raros da literatura e humanidades brasileiras (Foto: Luiza Guerra)
Relicário do saber

O complexo acolherá não apenas a biblioteca como também um café, a Livraria da Edusp João Alexandre de Barbosa, um auditório e o Instituto de Estudos Brasileiros, além de outros espaços destinados à realização de diversas atividades culturais como laboratórios, cursos, exposições e centros de pesquisa.

Para a Brasiliana foram reservados 6 mil metros quadrados, onde estarão resguardados mais de 32 mil títulos raros da literatura e humanidades brasileiras. No salão principal da biblioteca, a iluminação natural que transpassa a imensa claraboia metaforiza o conhecimento refulgente contido nas obras raras que podem ser contempladas nas estantes ladeadas por vidros e expostas ao longo das paredes. Enquanto se adentra a estrutura que lembra um imenso relicário, que ora expõe, ora vela seu conteúdo, os milhares de livros raros espreitam, instigam e seduzem os transeuntes, tal qual Mindlin tantas vezes o fora ao longo de seus 98 anos. Enfim, o acervo está no lugar onde deveria estar. E a Biblioteca é viva.

O caminho do meio

Para Puntoni, o maior legado da Brasiliana não está nas grossas paredes de concreto que dão forma à estrutura física do complexo. É na dimensão virtual que o projeto perpetra seu nome na história como pioneira na política de digitalização e democratização de acervos culturais, harmonizando a preservação de obras delicadas ao acesso universal à riqueza cultural nelas contidas. “A tecnologia entra no meio dessas duas aparentemente contraditórias missões e oferece um caminho que as concilia”, pondera o professor.

Através do escaneamento e disponibilidade das obras online, trabalho que vem sendo realizado no Laboratório de Digitalização, com apoio da Escola Politécnica da USP, a biblioteca garante que leitores do mundo todo possam usufruir de obras como o datiloscrito de Grande Sertão: Veredas, uma das raridades da coleção.

Segundo o diretor, a dimensão pública aberta da universidade é o maior comprometimento
da biblioteca. “Nosso projeto não envolve apenas digitalizar nosso acervo”, explica Puntoni. “Buscamos criar um espaço de colaboração para construir uma política pública para digitalização dos acervos no Brasil.” Embora a biblioteca física não esteja inaugurada, a versão online recebe diariamente entre 3 a 4 mil visitantes. Mindlin estaria satisfeito, o sonho tornou-se realidade.

‘Nada sem alegria’

Para acompanhar a inauguração, serão abertas duas exposições, uma permanente e outra temporária. A curadoria estará a cargo de Pedro Puntoni e Cristina Antunes.

A primeira falará do processo de construção do edifício, da coleção e da vida do casal Mindlin, sensibilizando as pessoas para a história da imprensa, do livro e o prazer da leitura. “A ideia é que os visitantes tenham a oportunidade de conhecer a biblitoeca de uma forma mais visual e, ao mesmo tempo, lúdica”, explica Puntoni. A exposição foi batizada de “Não faço nada sem alegria”, lema seguido pela biblioteca.

“Os destaques da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin”, título da segunda exposição, exibirá quase 100 raridades do acervo, dentre as quais estarão livros e manuscritos das várias vertentes da biblioteca como literatura, história, periódicos, imprensa e registros de viajantes.

Puntoni comenta que mais exposições estão sendo planejadas no local para os próximos meses. “Por exemplo, para o segundo semestre provavelmente teremos uma exposição sobre livro-objeto. Além disso, em conjunto com a Imprensa Oficial, nós temos planos para reeditar na integridade todos os números das seis revistas modernistas dos anos 1920”.