Professor portador do vírus HIV é exemplo de coragem e engajamento

“Antes de continuarmos, posso lhe pedir um favor?”, interrompe educadamente o professor argentino Jorge Beloqui, com uma voz calma e um carregado sotaque portenho. “Não me chame de senhor. Me chame de você.” Logo percebo que não se trata de uma simples preferência, muito menos de vaidade. A conversa que se segue exige proximidade e o experiente militante de 63 anos sabe disso como ninguém.

Apesar de ter apoio negado pela reitoria, Beloqui teve a solidariedade da diretoria e de alunos do IME. "Fizeram um abaixo-assinado. E até meus alunos assinaram."
Apesar de ter apoio negado pela reitoria, Beloqui recebeu a solidariedade do Conselho e de alunos do IME. “Fizeram um abaixo-assinado. E até meus alunos assinaram”

Nascido em 1949, em Buenos Aires, Jorge Adrian Beloqui assumiu sua homossexualidade na faixa dos 25 anos, em uma Argentina marcada pelo conservadorismo e pela repressão. Lá, formou-se em Matemática na Universidade de Buenos Aires, onde foi professor de 1972 a 1974. Demitido por razões políticas, Beloqui veio ao Brasil e naturalizou-se brasileiro. Em São Paulo, concluiu seu doutorado em Sistemas Dinâmicos e tornou-se docente do IME (Instituto de Matemática e Estatística).

O grande divisor de águas da vida do argentino está, no entanto, no ano de 1989. Após uma delicada cirurgia no pulmão, Jorge é submetido compulsoriamente a um exame de HIV. Ao acordar, recebe do médico a notícia de que a operação foi um sucesso e, em seguida, o resultado do exame que nem imaginara ter feito: Jorge era soropositivo. Ele conta que sua reação ao diagnóstico foi contida. “Não foi nenhuma grande surpresa. No fundo, eu já suspeitava. Mas pra que saber que eu tinha HIV, se era tão difícil conseguir tratamento?”

Com ou sem tratamento, não era mais possível ignorar a doença. O primeiro passo foi dar a notícia aos mais próximos. “Contei para amigos e antigos parceiros. Achei que eles deveriam saber”, lembra. No mesmo ano, Jorge ajuda a fundar o Grupo pela VIDDA (Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids) e inicia sua militância contra a AIDS. Antes, já participara dos grupos de afirmação homossexual Somos-RJ e Somos-SP. Mas a nova luta tinha suas particularidades. “Os grupos gays tinham seu mérito, mas não davam tanta atenção para a causa da AIDS”, explica.

Caminhos

Jorge passa a trilhar dois caminhos: o de docente e o de ativista. “Sempre separei as coisas. Não fazia questão de tornar pública minha doença.” Paralelamente, o argentino inicia tratamento. “Tomei AZT por quatro anos e DDI por dez meses. No fim de 1995, fiz um exame e descobri que os remédios já não davam o resultado esperado.”

Em 1996, após consultar seu terceiro médico desde que soube da doença, o docente toma a decisão de pedir ajuda à Universidade para custear seu tratamento. O remédio de que precisava era importado e não era fornecido pelo Ministério da Saúde. Na condição de funcionário, Jorge pede ao chefe de departamento do IME que envie seu pedido formal ao reitor. “Neste momento, eu já estava revelando para algumas pessoas meu status de HIV positivo e sabia que podia sofrer discriminação. Mas eu precisava do remédio e meu salário não dava.”

Em um envelope aberto, a resposta chega um mês depois ao escaninho de Jorge. Diante da negativa, o professor decide levar a questão ao Conselho do IME, ciente do inevitável choque de seus colegas. Apesar do tranco, a decisão é unânime. “Que a Universidade providencie rapidamente a estrutura necessária para todos os estágios do tratamento dos portadores de HIV. Em particular, o imediato fornecimento ao professor Beloqui”

Jorge se emociona. “Fizeram um abaixo-assinado. E até meus alunos assinaram. Em pouco tempo, circulavam abaixo-assinados também no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte”. Se a decisão de tornar pública a AIDS não trouxe respaldo da então reitoria, pelo menos trouxe a solidariedade da maior parte do departamento. Parabenizado por amigos por sua bravura, Jorge era categórico “Não se trata de coragem. A clandestinidade mata.”

Depois, o governo passou a oferecer tratamento a pacientes soropositivos, permitindo que a reitoria se eximisse de tal responsabilidade. A luta política de Jorge, ainda assim, deixou um traço de pioneirismo para a USP. Jorge é membro-fundador do Núcleo de Estudos para Prevenção de AIDS (NEPAIDS-USP). Ele é hoje editor do Boletim Vacinas anti-HIV, participa do GIV (Grupo de Incentivo à Vida, SP) e é membro do Conselho de Curadores da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS).