“Enterramos a última peça da Guerra Fria”

Para especialistas, reaproximação entre EUA e Cuba diminui rejeição aos norteamericanos, mas pode reafirmar força do país no continente
Barack Obama e Raúl Castro se cumprimentam na abertura da Cúpula das Américas do Panamá. (Foto: Ministerio De La Presidência)
Barack Obama e Raúl Castro se cumprimentam na abertura da Cúpula das Américas do Panamá. (Foto: Ministerio De La Presidência)

Frente a frente Barack Obama e Raúl Castro: o momento que marcou uma nova fase nas relações entre Cuba e Estados Unidos. Os mandatários protagonizaram um encontro histórico no início de abril, durante a Cúpula das Américas no Panamá: o primeiro contato formal entre os países em mais de meio século. Foi apenas o primeiro passo de um processo gradual de reestabelecimento da diplomacia e amistosidade entre os dois países, historicamente separados por herança da Guerra Fria. Herança maldita para os caribenhos, obrigados a lidar com um embargo econômico imposto pelos estadunidenses desde o estabelecimento do socialismo na ilha.

“Nossos governos continuarão a ter diferenças, mas ao mesmo tempo, nós concordamos que podemos continuar a avançar em nossos interesses mútuos”, disse o presidente norteamericano em uma coletiva de imprensa. Obama trabalha para deixar um legado em seu nome na política externa americana, solucionando de forma pacífica o conflito com os cubanos. Em dezembro, ele já havia anunciado seu objetivo de reabrir as embaixadas em Havana e Washington. Diante dos jornalistas, o democrata admitiu: “não estou interessado em batalhas que, francamente, começaram antes de eu nascer”.

Raúl Castro reconheceu em sua contraparte a figura de um homem “humilde”. Ele se mostrou disposto a um novo começo para o relacionamento da ilha com os EUA, apesar de um “histórico longo e complicado”. “Nós queremos discutir tudo, mas precisamos ser pacientes, muito pacientes”, falou.

Na opinião de Cristina Pecequilo, doutora em Ciência Política pela USP e professora de Relações Internacionais da Unifesp, a aproximação é claramente positiva: significa o abandono de uma política externa norteamericana “ultrapassada, que vem lá da Guerra Fria e hoje não faz mais sentido”. “Foi realmente uma grande jogada diplomática do governo Obama”, avalia.

É uma postura que aumenta o otimismo da comunidade internacional, mas uma série de medidas ainda precisam ser tomadas.. “Fora esses primeiros encontros entre Obama e Castro, você não tem nenhuma questão concreta que mostre que isso vai ser algo sólido no médio e longo prazo. São questões que se o Obama não resolver antes de sair da presidência, dependendo de quem ganhe as eleições no ano que vem, pode ser que tenha uma reviravolta”.

O primeiro passo para isso foi dado: Obama removerá Cuba da lista do governo americano de países que financiam o terrorismo. A presença dos caribenhos nesta listagem causa uma sanção, além de política, econômica, já que inibe investidores e empresas interessados em fazer negócios na ilha. A medida deve tomar efeito dentro de um mês, caso o Congresso não tome uma ação conjunta para bloquear a remoção.

Impasse legislativo
A negociação com o Legislativo é justamente o ponto a ser trabalhado pela administração democrata para levar adiante o legado que pretende, explica Amâncio Jorge de Oliveira, pesquisador do Centro de Estudos das Negociações Internacionais (Caeni) da USP. “Para o término do embargo econômico, será necessária uma ratificação no âmbito legislativo, onde o jogo político é diferente e temos que lembrar que está sendo dominado pelos republicanos. Quando essa ratificação ocorrer, a mudança será radical”, analisa. “Enquanto o acordo com Cuba fica no âmbito do poder executivo, é um acordo precário porque depende muito das vontades políticas”, diz.

Para Oliveira, uma vitória republicana pode fazer com que haja uma regressão na postura de aproximação entre Estados Unidos e Cuba. “Como já aconteceu na história: desde 1962 houve momentos de flexibilização ou radicalização dos embargos. Uma ratificação no Congresso consolida a mudança nessa relação e o fim do embargo. Obama precisa conseguir essa aprovação no legislativo e aí sim ele deixará um legado permanente e muito importante de um estadista moderado”.

Na avaliação de Pecequilo, a reversão dessa postura de Obama ficaria mais difícil para seus opositores caso o atual presidente conquiste vitórias diplomáticas significativas. “Ele precisa conseguir a retirada de Cuba da lista de países que apóiam o terrorismo, acho que isso seria um primeiro passo. Depois que esse passo for alcançado, temos a possibilidade da reabertura da embaixada norteamericana em Cuba”, explana.

A pesquisadora acredita que a abertura da embaixada trará novas oportunidades de negócios para os americanos e levará a uma flexibilização do embargo. “Se essas duas coisas acontecerem, talvez o legado do Obama não possa ser tão facilmente desconstruído assim. A sinalização é de que o embargo será a última etapa”.

Mais que bilateral. De acordo com Pecequilo, o efeito do reestabelecimento dos laços entre Cuba e EUA será sentido também em toda a região e no restante do mundo. Na América Latina, enfraquece o antiamericanismo, retirando um elemento de crítica à agenda externa norteamericana. “Ao mesmo tempo em que abre oportunidades de negócios, é preocupante porque significa que os Estados Unidos talvez queiram imprimir o ritmo deles para as Américas, quebrando os processos de integração regional. Seria uma reafirmação de força americana”, reflete a especialista em ciência política. “Para o resto do mundo, é algo muito mais simbólico, porque parece que enterramos a última peça da Guerra Fria”.

Por ANDRÉ SPIGARIOL