“O Estado destruiu a minha família”

Livre-docente da USP, Roberto da Silva fala sobre período internado na Febem e relata como a ditadura construiu um modelo de tratamento de jovens que persiste até hoje
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Foto: Laisa Beatriz

Abandonada pelo marido em um passado indecifrável, a mãe, com seus quatro filhos, chega a São Paulo no início dos anos 60 em busca de ajuda no Juizado de Menores da cidade. Após passar alguns dias na rua, tem sua internação em um hospital psiquiátrico decretada pela Justiça. As crianças vão para quatro abrigos em diferentes cidades.

“Essa é a história oficial, dos relatórios. Ninguém me disse nada sobre isso”, explica Roberto da Silva, Livre-Docente da Faculdade de Educação da USP (FEUSP). Em 1962, ele era uma das quatro crianças quando, com 5 anos, foi para um abrigo no interior de São Paulo.

Quase ao mesmo tempo, em 1964, o golpe que depõe João Goulart anuncia o início da ditadura. No governo, militares acusam o Judiciário e a sociedade de não conseguirem resolver os problemas da infância. Ainda em 1964, criam a Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor). Em 1967, com a Lei de Segurança Nacional, estatizam os abrigos de todo o país.

“Estava em um abrigo confessional em Sorocaba quando assisti a substituição de quadros técnicos e religiosos por policiais militares. E é aí que a disciplina lá dentro passa a ser militar”, explica Silva.

Com 12 anos, após cometer uma infração interna, é transferido para a Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor) no Tatuapé. Ficaria lá até os 18 anos.

“Minha transferência ocorreu em 29 de outubro de 1969. Mas hoje o tratamento dado ao adolescente não é diferente. A filosofia militar permanece. Nas unidades, se estabeleceu a cultura de ver os internos como inimigos sem recuperação. Assim, todos os rigores se justificam no tratamento destes meninos”, explica.

Jovem da primeira geração tutelada pela ditadura, ele relata que, na Febem, direitos básicos eram trocados por “bom comportamento”. Cenários das prisões adultas eram reproduzidos nas unidades de internação, como a presença do crime organizado.

“Na época, jovens como eu, que viviam em fazendas, vieram para esta realidade de meninos urbanos. Era um choque de realidade. Aprendi a ser infrator dentro da Febem”, afirma.

No Tatuapé, as aulas eram baseadas em princípios militares, como conceitos de defesa pessoal. “Uma dessas aulas era aprender a desequilibrar o outro. Os próprios meninos adaptaram esta técnica para, enquanto desequilibram você, puxarem sua carteira. Assim nasceu o trombadinha”.

Roberto deixou a Febem com 18 anos, cometeu furtos, e passou mais 10 anos em cárcere prisional. “O ambiente era diferente, mas tinha algo de familiar, porque nós [ex-internos] nos encontrávamos. Nisso percebi que se dependesse do estado e da sociedade, teríamos um destino irremediável”, afirma.

Como autodidata, Silva tentava entender como funcionava todo o aparato de Justiça. “Isso me levou a tentar organizar e conscientizar os presos na defesa de seus interesses”, relata. O movimento foi reprimido, acusado de tentar criar nas cadeias um “sindicato do crime”.

Em liberdade condicional, Roberto percebeu que precisaria de um diploma para ajudá-lo a seguir com a mobilização. Ele foi além e se tornou Livre-Docente da FEUSP. Terminou o ginásio, o ensino médio, a graduação em Pedagogia na UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso), o mestrado e o doutorado na USP, foi aprovado no concurso para professor e conseguiu a livre docência em 2009.

“Queria investigar aquelas histórias que ficaram interrompidas. Não era para iniciar em um novo ramo profissional”, conta.

Silva recuperou sua história. Descobriu que sua mãe, mesmo internada à força, tentou encontrar seus filhos nos abrigos onde ele e seus irmãos estavam.

“Ficou claro que nunca tínhamos sido abandonados. O que houve foi uma intervenção judicial nessa família que a destruiu. O Estado tinha nossas informações, sabia onde estávamos. Mas usavam isso contra nós, para nos manter separados. O Estado destruiu minha família”, afirma.

No mestrado, Roberto identificou todos os responsáveis por sua separação familiar. Esteve frente a frente com diversas destas pessoas, como assistentes sociais, psicólogos e juízes.

“Mostrava prontuários, com assinaturas deles, com os fundamentos que eles apresentavam, mas eles diziam que estavam apenas cumprindo ordens”, relata.

Silva não aceita esta justificativa e reclama que sua situação, assim como a de milhares de famílias, nunca foi uma preocupação das Comissões da Verdade.

“O Estado fez isso durante 500 anos no Brasil. Tirou um monte de crianças de famílias pobres para entregá-las a famílias ricas, mas parece que isso não é uma questão nacional”, alega.

Atualmente, ele só tem contato com um de seus irmãos. O outro foi adotado por uma família italiana e não foi mais encontrado. Sua irmã faleceu. Internada no hospital psiquiátrico, sua mãe também faleceu sem reencontrar seus filhos.

Por Igor Truz