A atuação feminina no universo dos games

Personagens hipersexualizadas e cultura machista são desafios para mulheres envolvidas na área

Lara Croft, personagem da série de jogos Tomb Raider, ganhou mais um universo para se aventurar em The Rise of the Tomb Raider, lançado em novembro. Desde 1996, a arqueóloga demonstra sua coragem e talento em aventuras ao redor do globo. Ao longo destes dezenove anos, as melhorias gráficas são tão perceptíveis quanto as mudanças em sua aparência física e psicológica: a hiperssexualização da personagem devido às suas vestimentas – não adequadas para uma arqueóloga – e a evidência de curvas – desproporcionais à realidade – têm sido atenuadas em detrimento de novas características e habilidades, que acentuam sua inteligência e destreza.

Pioneira, Lara assumiu protagonismo em um jogo de aventura, gênero geralmente reservado a personagens do sexo masculino. Foi a primeira personalidade no universo dos games com a qual muitas garotas se identificaram. “Começou como uma personagem forte, mas extremamente sexualizada e que atualmente é forte, levemente sexy, mas, ainda sim, uma personagem mais profunda: ela realmente tem um motivo para estar lá, tem um embasamento psicológico”, comenta Thais Weiller, designer de games e mestre pela Escola de Comunicações e Artes (ECA).

(Arte: Leandro Bernardo)
(Arte: Leandro Bernardo)

 

Em alguns aspectos, a evolução e enriquecimento da personagem nesses últimos tempos se deve à demanda do mercado e à presença feminina na produção do jogo. A atuação da roteirista de games Rhianna Pratchett no desenvolvimento da narrativa rendeu a Lara uma nova personalidade, com a exploração de aspectos psicológicos. Contudo, ainda são necessárias mudanças para a consolidação da presença e representação feminina no universo dos games.

Evidenciando estereótipos

De Lara Croft para os dias atuais, muitas outras personagens femininas vêm assumindo papéis de destaque em jogos das plataformas interativas. Visando estudar como essas figuras femininas são apresentadas, a estudante de design da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP), Mariana Izuwaka, realizou seu trabalho de conclusão de curso na perspectiva de analisar como os padrões culturais e a indústria de games fortificam estereótipos. “Eu sempre me interessei por videogame e comecei a me perguntar: ‘por que você tem que ser um homem?’, ‘por que tem que salvar alguém, e esse alguém tem que ser sempre uma mulher?’”, conta.

Nesse sentido, a pesquisadora na área de games Flávia Gasi enxerga que há maiores possibilidades de representação feminina, mas faz ressalva aos jogos nos quais as personagens não passam por transformações ao longo da narrativa. Não necessariamente a personagem feminina será a “donzela em perigo”, mas, muitas vezes, está encaixada em estereótipos dos quais não consegue se livrar. “Do começo ao final da história, ela é a mesma coisa sem evolução”, explica.

A figura feminina também é  frequentemente moldada de forma hiperssexual, fazendo uso de vestimentas inadequadas para situações nas quais está inserida, principalmente em jogos de aventura ou luta. SoulCalibur, jogo para console e multiplataforma, é um exemplo disso. Enquanto na narrativa do game os personagens masculinos portam armaduras reluzentes e gigantes, as mulheres utilizam panos restritos a cobrir regiões estratégicas do corpo, como uma pequena parte de seu busto, os quais se apresentam de maneira desproporcional à realidade. Para Weiller, a série SoulCalibur tem piorado em sua representação de personagens femininas. “Nos últimos jogos, elas foram ficando com menos roupa e com mais peito, a ponto dos peitos ficarem maiores que as cabeças”, avalia.

Em League of Legends (LOL), desenvolvido pela Riot Games e mais jogado do mundo, em uma arena de batalha multiplayer, as opções de heroínas femininas que possuem decotes, roupas curtas e desconfortáveis para o combate, além de armaduras que não protegem todo o corpo compõem a grande maioria. Em um de seus visuais alternativos, a heroína Miss Fortune, por exemplo, consegue se portar na batalha de salto alto, vestido com fenda profunda nas pernas, segurar duas pistolas e – como se não bastasse – manter uma pose sensual, ajeitando sua postura de forma a ressaltar suas curvas. Deve-se destacar porém, que  novas heroínas que vêm surgindo apresentam traços diferentes do antigo padrão. Um exemplo disso é Illaoi, campeã prevista para ser lançada em breve, que apresenta corpo grande e musculoso, diferente dos das demais.

Em relação à hipersexualização das personagens, a designer de games Weiller se define como não tão ortodoxa em relação ao tema, isso porque não é contra as personagens femininas serem sexies: “Eu sou contra elas serem sexies quando isso acontece fora de contexto”. A designer se posiciona contra a sexualização excessiva e desnecessária, no entanto. Ela acredita que, de forma geral, as personagens femininas estão mais fortes e seguras.

Em sua edição de 2016, a franquia de futebol FIFA inseriu o futebol feminino como opção de jogo, ação que demonstra o interesse da indústria de games em se adaptar à realidade de que as mulheres são parcela fundamental do mercado. Flávia Gasi relata que “em alguns países, como nos EUA, o futebol feminino é muito mais forte que o masculino, e as pessoas queriam poder jogar com as suas jogadoras favoritas”. Ao mesmo tempo, ela pontua a importância dos consumidores perceberem que outros elementos podem ser abordados nos jogos, e que isso não vai tirar o lugar dos personagens masculinos. “Isso não vai diminuir a posição de ninguém”, afirma.

No FIFA 16, além do futebol feminino como opção, ele também aparece na capa das edições destinadas à América do Norte. De acordo com dados de pesquisa das britânicas Rosalind Wiseman e Ashly Burch, isso é muito positivo, não só para as garotas que se sentem representadas, como também para a própria indústria de games. Conforme analisado, as meninas que responderam à pesquisa mostraram sua preferência por jogarem com personagens femininas, número que atingiu a marca de 60% para as garotas do ensino médio. Ao responder à pergunta ‘é mais provável que você jogue algum jogo baseado no gênero do personagem?’, 20% dos garotos relataram que sim, ao passo que 28% das garotas concordaram. Ou seja, quando os desenvolvedores colocam personagens masculinos na capa, não estimulam as vendas entre garotos, mas desestimulam entre as garotas. Sobre a resistência em criar jogos voltados para mulheres, ela aponta como possível motivo a sociedade em que crescemos: “A gente nasce numa sociedade que é machista. E eu não acho que quando você vai pro mercado de trabalho isso mude”.

Elas por elas

 

De acordo com Gasi, uma das principais razões pelas quais as personagens femininas no universo dos games não são capazes de representar o gênero feminino sem estereótipos deve-se à pequena parcela de mulheres presentes no ramo de desenvolvimento de games. Segundo pesquisa realiza pela Next Gen Skills Academy no Reino Unido no ano passado, a média de desenvolvedoras nas empresas de jogos era de 14%. Diante dessa pequena porcentagem, os homens acabam tendo domínio da escolha de características e atributos para as personagens femininas em processo de criação. Assim, o desenvolvimento de personagens mais redondas, ou seja, que passam por transformações ao longo da narrativa, seria um grande desafio, pois “acabam sendo criados jogos dentro de um universo muito masculino”, explica Flávia Gasi.

A pesquisadora diz que, “dependendo do país, existem incentivos para contratar mulheres, para podermos ter jogos desenvolvidos de forma mais igualitária, mas por enquanto há um predominância masculina”. Gasi explica que, com a presença de mulheres no desenvolvimento do game, criar personagens femininos mais complexas, com evoluções no decorrer do jogo se torna um processo mais natural.  

Quando o vídeo game surgiu no final da década de 60, não havia distinção de gênero. Foi na década de 80, quando já tinha atingido certo grau de popularidade, que “com vários jogos saindo, as empresas perderam um pouco do controle da qualidade dos games, gerando o crash de 1980 no mundo dos games. As vendas caíram, e as empresas resolveram focar num público: o masculino”, afirma Mariana Izuwaka. Esta opção é apontada como fator que pode explicar baixo número de mulheres na indústria. Para Thais Weiller, a ausência de desenvolvedoras mulheres na área de jogos também é decorrente de as mulheres ainda estarem, em certa medida, distantes da área de exatas, responsável por formar metade dos programadores: “As pessoas acreditam na ideia de que quem trabalha com exatas são homens”.

Ainda segundo dados da Next Gen Skills Academy, dentre as 311 mulheres que participaram da pesquisa, 33% já haviam sofrido assédio ou bullying relacionado ao seu gênero no ramo de games, ao passo que uma em cada três mulheres relatou se sentir insultada ou oprimida no ambiente de trabalho. Gasi entende que esses dados não significam necessariamente que todos os homens presentes na indústria de games sejam “maus” ou “machistas”, mas, por serem a maioria, criam um ambiente opressor para a minoria, que são as mulheres.

Devido à pequena representatividade feminina no espaço de desenvolvimento, é comum que os jogos criados para atender o público feminino sejam pensados de forma preconceituosa. “Os  desenvolvedores me dizem ‘eu não quero apenas fazer jogo de ‘florzinha ou tamagotchi’, como se essas fossem as únicas opções que as mulheres jogam”, desabafa Weiller. Para ela, a inserção de jogos sociais e mobiles fez com que o consumo de games por parte das mulheres aumentasse, já que nesse tipo de jogo não havia o preconceito de que eles eram “para meninos”, de forma que os títulos acabaram sendo mais inclusivos. “As mulheres sempre quiseram jogar, só não tinham jogos para elas”, completa.

Nos campos de batalha

 

Segundo a agência Sioux, no Brasil, 47,1% dos jogadores de videogame são mulheres. Esse dado contesta o estigma existente de que o universo dos games é para garotos – como sustenta o nome do clássico console, gameboy.

No cenário competitivo nacional de League of Legends (LOL), Geovana Moda, conhecida por Revy, foi a única garota que já teve a chance de jogar a maior liga do país como reserva do time KaBuM! Black. Mesmo diante de tal realidade, ela se posiciona contra a existência de campeonatos estritamente femininos, pois, para elas, “oportunidades variam de acordo com seu potencial, não com quantos cromossomos X você tem. Times querem lucrar, e se a garota for melhor que o garoto, ela vai ocupar a vaga no time”, comenta. No entanto, Anna Carolina Aurili, conhecida como Chiszen e que possui mais de 13 mil likes em sua página do Facebook, discorda. Para ela, nos últimos anos, essa realidade está melhorando, mas ainda é difícil para as garotas que querem  evoluir no mundo dos jogos.

Anna Carolina Aurili, a Chiszen, compartilha suas partidas online com seus seguidores (Foto: Fernanda Guillen)
Anna Carolina Aurili, a Chiszen, compartilha suas partidas online com seus seguidores (Foto: Fernanda Guillen)

 

Para a estudante do Instituto de Psicologia de Ribeirão Preto, Julia Di Nubia, jogadora casual de LOL e streamer (ou seja, jogadora que transmite suas partidas online), o problema não são as oportunidades para mulheres se profissionalizarem nos games, e sim, o incentivo. Enquanto os garotos têm muitos modelos de jogadores profissionais para se espelhar, as garotas não. Outro problema é que jogando online, sofrem constantemente com insultos machistas. Em uma partida, foi necessário apenas utilizar um pronome feminino para que quatro desconhecidos começassem a atacá-la. “Fui chamada de ‘attention whore’ [exibida], começaram com uma chuva de ‘manda nudes’, aquela brincadeira sem graça que envolve claramente a exposição de mulheres sem seu consentimento”, relembra.

Hanae Oseki, aluna de arquitetura da FAU, também vivenciou situação desagradável. Quando entrou para o grupo de LOL da Universidade no Facebook, teve que bloquear garotos que “ficavam fazendo piada de mulher a todo momento”, além dos que “dão em cima, aí a gente se irrita, dá o fora e eles dizem ‘você é ruim, você é feia’”, relata. Para combater quaisquer formas de preconceito, Hanae criou a página “League of Legends – Denúncia”, que pode ser acessada através do link: https://www.facebook.com/loldenuncia/.

Devido a episódios desagradáveis e não raros, muitas mulheres desistem de jogar com desconhecidos. No caso da designer de games Thais Weiller, isso se deu no momento em que, em um jogo, vários homens começaram a comemorar por terem uma mulher no time. “O motivo deles comemorarem não era porque eu jogava bem, era por eu ser uma mulher. Você se sente idiota e não quer isso. Você está lá por causa das suas habilidades e da sua capacidade de poder jogar”.

As streams, transmissão simultânea das partidas, também são outro espaço no qual as garotas enfrentam situações desconfortáveis. Julia relata que, em certa ocasião, estava fazendo stream de cosplay – isto é, caracterizada de algum personagem – “quando um moço chegou, me chamou de gorda e falou que eu tava estragando o personagem”. Chiszen reconhece que ataques de terceiros não são restritos apenas às jogadoras femininas, entretanto, no caso delas, eles são mais especifícos: “O garoto chega falando ‘volta pro fogão’”.

Para mudar essa realidade é necessário incentivo às garotas para que conheçam o universo dos games, joguem e programem. De acordo com Flávia Gasi, “às vezes a menina tem total interesse em trabalhar com vídeo game, mas ela não tem como descobrir isso se a gente não contar pra ela que ela pode”. Para Mariana Izuwaka, “é preciso fazer barulho, mostrar que estamos aqui também. Isso vai mudar, estamos vendo isso acontecer”.

Por Fernanda Guillen e Vitória Batistoti