PEC 215 é retrocesso aos direitos indígenas

Emenda prevê mudanças que podem limitar a demarcação de terras de ocupação tradicional

No dia 27 de outubro, uma Comissão Especial da Câmara aprovou a PEC 215, emenda que visa passar para o Congresso a responsabilidade de demarcar terras indígenas, titular territórios quilombolas e criar unidades de conservação ambiental. Hoje, essas são competências do Poder Executivo da União, exercidas através de seus órgãos técnicos, como a Funai e o Incra. A proposta tem sido combatida por movimentos indígenas e questionada por juristas e antropólogos por ser considerada um retrocesso. O Ministério Público Federal também já se posicionou contra a medida, tendo organizado uma audiência pública para discuti-la no dia 26 de novembro.

“A PEC significa, não só para a gente, mas para o Brasil todo, um retrocesso muito grande, porque em vez de garantir o direito dos povos originários, está tentando negar esse direito”, diz Sônia Guajajara, liderança indígena integrante da Apib (Associação dos Povos Indígenas Brasileiros). Segundo Sônia, aprovar a PEC significaria, na prática, paralisar os processos de demarcação de terras que, mesmo a cargo do Poder Executivo, podem ser longos e complexos. “Hoje, tem terras que levam 30 anos ou mais até o processo ser concluído”, afirma.

Daniel Pierri, antropólogo do Centro de Estudos Ameríndios da USP (Cesta), afirma que a paralisação das demarcações aconteceria por conta da disputa de interesses dentro do Legislativo. “A gente diz paralisar porque a gente sabe que a demarcação de terras é um assunto de interesse de minorias étnicas e, se a PEC for aprovada, a decisão final ficaria a cargo de uma maioria, que compõe o Congresso Nacional e que responde a interesses principalmente dos adversários dos índios.”

A PEC também prevê outras mudanças, como a impossibilidade de ampliação de terras já delimitadas, a revisão dos processos que ainda estão em curso para ratificação do Congresso Nacional, a indenização em dinheiro aos proprietários das áreas demarcadas, além de uma controversa tese chamada de “marco temporal”. Essa medida restringiria a demarcação de terras àquelas que estivessem ocupadas de maneira tradicional pelos indígenas em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. Contudo, na prática, isso já acontece.

Marco temporal

Segundo o jurista Samuel Barbosa, a tese criada pelo STF (Supremo Tribunal Federal), já é considerada como critério para a decisão quanto à aprovação ou não da demarcação de terras indígenas por parte dos juízes, apesar de a medida ainda estar em discussão. A tese é questionada por juristas e estudiosos da causa indígena. Segundo a antropóloga da Funai (Fundação Nacional do Índio), Malu Brant, o direito dos índios à terra é uma causa que não pode ser considerada temporal. “Os índios já estavam aqui antes da constituição do Estado Nacional, então é um direito preexistente, imemorial, que a gente perde no tempo desde quando existe”.

O ponto problemático da tese reside no fato de que as aldeias e sociedades indígenas que foram expulsas de suas terras antes de 1988 não terão direito às suas terras, mesmo tendo vivido originalmente nelas.

O marco define o reconhecimento das terras às aldeias que lá residiam na data da promulgação da Constituição Federal, salvo esbulho – quando são retirados da área que ocupavam e impedidos de voltar. De acordo com Samuel Barbosa, a tese foi inserida após a identificação da necessidade de introduzir mais critérios para o reconhecimento de uma área tradicional pelo STF. “A Segunda Turma do STF está tratando de modo restrito o conceito de esbulho, está definindo o conceito e criando obstáculos para o reconhecimento de áreas tradicionais, de terras indígenas”, afirma o jurista.

Samuel cita três casos recentes em que a 2ª Turma do STF anulou a demarcação de terras feita pela Funai utilizando esse conceito de marco temporal e de esbulho: a TI (terra indígena) Guyraoka (MS) dos povos Guarani e Kaiowá, a TI Porquinhos, do povo Canela-Apãnjekra e a TI Limão Verde, no Mato Grosso do Sul, do povo Terena. Este último, por exemplo, que sempre habitou a região do MS, foi o primeiro a sofrer com a decisão em uma terra que chegou a ser homologada – último estágio do processo de demarcação.

Inconstitucionalidade

A PEC é considerada inconstitucional principalmente por introduzir a possibilidade do regresso de um direito. A constituição garante direitos fundamentais a povos indígenas e quilombolas, que  poderiam ser feridos com a mudança. “A gente não pode reformar a Constituição para regredir os direitos. A gente pode ampliar os direitos, mas não voltar atrás”, defende Samuel Barbosa.

Ao transferir a decisão e o processo de demarcação das terras ao Congresso, a PEC também fere o princípio da separação de poderes. A demarcação de terras é considerada um ato administrativo, não legislativo e, portanto, cabe ao poder executivo. Isso porque trata-se do reconhecimento do direito à terra, e não de sua criação. “O processo de demarcação ocorre simplesmente para deixar claro para a sociedade qual o limite da ocupação de cada povo”, afirma o antropólogo Daniel Pierri.

Para Malu Brant, outro problema é a falta de tradição do Congresso nos processos de demarcação de terras. “O Congresso Nacional não tem experiência nenhuma com isso. Não tem técnicos, não tem estrutura”, diz a antropóloga.

Próximos passos

Para ser aprovada, no entanto, a PEC, que já tramita há 15 anos, ainda precisa ser votada em dois turnos na Câmara e no Senado, alcançando três quintos dos votos favoráveis. Em maio deste ano, porém, 48 senadores assinaram manifesto contrário à PEC, classificando-a como “um atentado ao direito dos povos indígenas”. Se o posicionamento se mantiver até o momento da votação, isso significaria sua não-aprovação. Segundo Samuel Barbosa, no caso de a emenda receber parecer favorável, ainda seria possível recorrer ao STF, que tem o poder de declará-la inconstitucional.

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Arte: Leandro Bernardo

Por Juliana Fontoura e Roberta Vassallo