Das obras proibidas aos livros mais vendidos

A Igreja Católica aboliu o Index Librorum Prohibitorum; hoje volumes relacionados à religião são sucesso
Obras proibidas aos católicos pelo Index Librorum Prohibitorum, publicado pela primeira vez em 1559 (Reproduções/ Arte: Giovanna Lukesic)

Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Jean Jacques Rousseau, René Descartes, Gustave Flaubert, Allan Kardec, Marquês de Sade… O que estes nomes têm em comum? Todos entraram no Index Librorum Prohibitorum, índice de obras proibidas aos católicos, publicado pela primeira vez em 1559. Hoje, no entanto, essa seleção não existe mais: em 14 de junho de 1966, a Igreja Católica extinguiu, formalmente, a lista. Passados 50 anos, a Instituição continua presente no universo dos livros: em recentes rankings acerca de vendas expressivas, como os do PublishNews, figuram títulos como “Ruah”, de autoria do Padre Marcelo Rossi, e “O nome de Deus é misericórdia”, do Papa Francisco. A influência católica na esfera da leitura, antes carimbada com o signo do cerceamento, apresenta-se agora de outras formas. Como isso ocorre? Para esse debate, o Jornal do Campus traz proposições de pessoas que, de modos distintos, possuem contato com o tema – visto que conhecer a produção editorial de uma nação pressupõe se deparar com valores culturais e ideológicos.

Psicologia opina

Geraldo José de Paiva, professor sênior do Instituto de Psicologia (IP-USP), acredita que nos séculos XVI a XVIII os volumes vetados não tinham tamanho impacto na população em geral, posto que a maioria era analfabeta. “Os livros proibidos atingiam os letrados. É preciso entender a proibição: uma das razões, certamente, era salvaguardar a pureza da doutrina e dos costumes, que é obrigação de toda instituição religiosa”, pontua Paiva, que fez pós-doutorado em Psicologia da Religião na Université Catholique de Louvain (Bélgica).

Para o estudioso, não há censura e nem condução de leitura por parte do catolicismo na contemporaneidade. “Naturalmente, são indicadas ou propostas leituras de obras informativas ou edificantes dentro do papel da Igreja de fomentar o conhecimento da doutrina, como também acontece nos cursos universitários de Literatura ou no Ensino Médio, quando os alunos são levados a ler este ou aquele autor”, compara Paiva.

História considera

Ivan Baycer Junior, que em sua dissertação de Mestrado analisou os mecanismos retóricos utilizados por Tertuliano (o primeiro escritor cristão a produzir, em latim, uma obra literária) na defesa da proto-ortodoxia, assinala que o grau de influência política, social e intelectual do catolicismo cresceu junto com a própria Igreja. Conforme ganhava espaço na sociedade e na vida íntima dos indivíduos, a entidade foi responsável não só pelo Index, como também pela Inquisição. Mesmo sendo menos influente no período atual, a religião ainda é um norte para muitos: “Não existe mais uma lista de obras proibidas, mas as pregações e as opiniões de sacerdotes podem influenciar na escolha das leituras dos fiéis”, salienta Junior. Segundo o historiador, formado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), não se pode falar em censura por parte da Instituição, e sim em autocensura de certos adeptos, a qual pode ser compreendida como uma pressão social e medo de reprovação alheia.

“A literatura católica é bem vendida, pois o seu conteúdo encontra eco em seus leitores. Deve-se lembrar de que esta literatura oferece ao seu público valores absolutos em um mundo relativo, gerando segurança; assim como oferece esperança em uma época de crise, gerando bem estar, boa aceitação e difusão de sua mensagem”, afirma Junior. A modernização do discurso católico é outro fator nessa equação de sucesso comercial.

Filosofia analisa

Marília Pacheco Fiorillo, docente da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), recorda que a Bíblia foi o primeiro livro no formato conhecido hoje e que mantém o posto de “maior best-seller da humanidade”. A escritura foi a responsável por impulsionar e consagrar a invenção da tipografia por Johannes Gutenberg no século XV. As indulgências, “documentos eclesiais que, mediante certo preço, garantiam ao pecador o perdão e o pedágio para o Paraíso”, foram também campeãs de impressão.

A pesquisadora em História e Fenomenologia das Religiões opina que, no presente, não há autocensura devido a quesitos religiosos: “Nem daria [para existir autocensura], pois no Index Librorum Prohibitorum estão praticamente todos os autores fundamentais para a História do Pensamento e da Literatura. A depender dessa listagem, a ignorância se tornaria a grande virtude”, conclui Marília.

Se a professora não considera que exista autocensura atualmente, tampouco julga que haja condução religiosa nas definições de leitura. “Ainda mais em um momento no qual a leitura, como a entendíamos, está agonizando, substituída pela desleitura nas redes sociais”, sublinha.

Teologia pondera

Emerson Sbardelotti, mestre em Teologia pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), crê que “o fato de, na História, termos livros proibidos pela Igreja ou pelos governos, nos deixa a lição de que precisamos melhorar ainda muito enquanto seres humanos”. O Agente de Pastoral, além de frisar a importância de compreeender o contexto em que o Index foi aplicado, complementa que, com o índice, “a sociedade pode ter perdido a chance de avançar mais em sua humanidade, no diálogo, no respeito e no encontro; a Igreja, de se abrir um pouco mais em relação ao que ela acreditava ser diferente ao já estabelecido”.

Nos papados de João Paulo II e Bento XVI, notificações contra escritores latino-americanos foram acentuadas. Entretanto, assegura Sbardelotti: “Uma notificação não é uma proibição e, sim, uma oportunidade para que alguns pontos da obra em questão sejam revistos em conformidade com o que pede a Igreja”. Agora, com o Papa Francisco, a Igreja Católica coloca-se como “uma senhora que, com a experiência de anos de vida, age com compaixão ao invés de punição; diálogo e não julgamento”, esclarece o teólogo, o qual presume que a Instituição não conduz as escolhas de leitura.

Biblioteca sugere

Como um acervo uspiano lida com conteúdos religiosos? Maria Aparecida Laet, chefe da biblioteca Florestan Fernandes (FFLCH-USP), diz que os livros, tanto os escritos por católicos quanto os relacionados a essa temática, que mais acumulam empréstimos são os de autoria de Santo Agostinho e Cesare Cantu, bem como “Sermões”, do Padre Antônio Vieira, e “Suma Teológica”, de Tomás de Aquino. “Não se pode esquecer de que as bibliotecas da USP são universitárias e, portanto, o acervo é essencialmente acadêmico”, argumenta Maria.

Editora expõe

Regina Brandão, da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), reitera o foco acadêmico, também presente na editora. No catálogo, há obras de Antropologia, História e Sociologia, áreas que analisam as mais distintas religiões. “Não temos livros católicos especificamente, e sim estudos sobre a religião católica”, enfatiza Regina.

Graduanda comenta

Bianca Santana, aluna de Letras (FFLCH-USP) e integrante da Aliança Bíblica Universitária (ABU), surpreendeu-se ao saber do expressivo número de vendas de livros redigidos por católicos. Embora não tenha discutido o tema na faculdade, ela não vê os volumes com conteúdos religiosos como sendo inferiores a outros escritos. “Acho que esses livros possuem apenas uma visão de mundo diferente da de obras não religiosas”, avalia a estudante.

Leitora reflete  

Maria Pessoa, leitora assídua de obras católicas, afirma que tais leituras lhe trazem paz, conforto e paciência. “As pessoas estão tão distantes umas das outras, em especial em razão da internet, e os padres nos ajudam a lidar com essa questão, pessoalmente ou por meio dos livros”, explica. A aposentada conta que está aberta a todo tipo de leitura e que a religião não interfere em suas opções.

Por Heloísa Iaconis