O cérebro humano, a ciência brasileira e o golpe político segundo Miguel Nicolelis

Foi no quintal da Dona Lígia, sua avó, que Miguel Ângelo Laporta Nicolelis se tornou cientista. Um dos maiores nomes da neurociência do Brasil e um dos vinte maiores cientistas do mundo no começo da década passada pela revista “Scientific American”, aprendeu desde cedo que fazer ciência é questionar e, principalmente, ajudar os outros. O que ele definiria mais tarde como “agente de transformação social”.

E foi aqui, na Universidade de São Paulo, que o paulistano de 56 anos deu o pontapé oficial de sua carreira: formou-se médico e doutor em fisiologia pela Faculdade de Medicina. Mas logo o palmeirense de coração foi prospectado pela ciência internacional, onde permanece até hoje como Professor de Neurobiologia e Engenharia Biomédica e co-diretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke, no estado de Carolina do Norte (EUA).

O projeto de Nicolelis e sua equipe, chamado de Andar de Novo, parece ter saído de uma ficção científica: estudando a interface cérebro-computadores, eles desenvolvem próteses neurais para a reabilitação de pacientes que sofrem de paralisia corporal. Com implantes no cérebro desses pacientes, e com um traje robótico que ajuda a dar movimento, pessoas que só locomoviam em  cadeira de rodas há mais de 10 anos voltaram a sentir algumas partes de seus corpos e até ficaram em pé e caminharam.

As ideias do cientista, porém, não agradam a todos: Nicolelis acabou sendo pauta de diversas reportagens que evidenciaram uma cisão em sua equipe de pesquisa. Além disso, foram noticiados desentendimentos entre o pesquisador e outros cientista brasileiros sobre as vias de financiamento de sua pesquisa e a viabilidade do projeto.

Nicolelis foi o convidado especial para a Aula Magna dos ingressantes da pós graduação da USP Capital, que aconteceu dia 6 de abril no Auditório Prof. Francisco Romeu Landi, na Poli, na qual falou sobre os constantes cortes que a universidade está sofrendo e o impacto disso para a ciência. Antes de sua palestra, porém, o professor conversou com o Jornal do Campus sobre sua carreira, expectativas para o futuro e também sobre os rumos da produção científica no Brasil.

(Ilustração: Artur Karaa)

Jornal do Campus: Quem é Miguel Nicolelis? E quem você ainda almeja ser?

Miguel Nicolelis: Eu sou quem sempre fui. Um neurocientista brasileiro, radicado no Estados Unidos há quase 30 anos, que desenvolve projetos em ambos os países. E eu almejo ser quem sou hoje: um cientista que trabalha na intersecção de múltiplas áreas de conhecimento focadas no entendimento do cérebro.

JC: Você aspira em ser o primeiro Nobel brasileiro?

MN: Isso não é uma preocupação. Acho que nenhum cientista vive com essa preocupação, mesmo porque é algo extremamente etéreo para a maioria de nós. Nossos objetivos de vida são diferentes. O que um cientista profissional quer é chegar o mais próximo possível da resposta para a pergunta que você criou no começo de sua carreira, ou ao longo dela. Essa é minha maior preocupação. Acho que o Brasil tem inúmeros cientistas, daqui ou que moram fora, com muita competência. Qualquer escolha, como a de um prêmio, é muito subjetiva e baseada em um grupo de pessoas que divergem de opinião. Eu acho que o Brasil está próximo de  ganhar um Nobel, mas eu nunca parei para pensar nisso. Para mim é perda de tempo.

JC: Se pudéssemos definir em porcentagem o que já conhecemos do cérebro humano. Quanto seria? Até onde podemos chegar?

MN: É muito difícil dar uma resposta categórica. Sabemos muito pouco. A neurociência é uma disciplina muito jovem: formalmente ela existe apenas desde o final do século XIX. É claro que outras pessoas refletiram sobre o cérebro e fizeram discussões interessantes sobre o assunto antes disso, mas como disciplina ela é muito emergente. Temos aprendido muito, mas eu ainda questiono quanto, pois cada vez que fazemos uma pequena mudança em nossos experimentos vemos que o cérebro responde de uma forma totalmente diferente. Isso me faz crer que estamos apenas na infância da neurociência.

JC: Onde está, hoje, o Projeto Andar de Novo ?

MN: Nós já publicamos dois trabalhos mostrando um resultado surpreendente na recuperação parcial que os pacientes tiveram, algo que foi extremamente inesperado, pois nunca havia sido documentado em pacientes com lesões crônicas na medula espinal. Já reproduzimos os resultados do primeiro grupo agora com um segundo grupo, de controle, mostrando que realmente o uso da interface cérebro-máquina, do treinamento com prótese robótica, e o feedback tátil são essenciais para a recuperação dos pacientes. No grupo controle você vê alguma melhora mas é algo muito incipiente, muito pequeno quando comparado ao grupo com treinamento. Agora estamos remetendo mais três ou quatro trabalhos para publicação, mas a longo prazo não temos como saber o que vai acontecer… No Brasil as coisas estão meio imprevisíveis no momento. O futuro não sei.

JC: Apesar no financiamento que vocês conseguiram, o tempo disponibilizado para a apresentação do projeto Andar de Novo na Copa do Mundo foi ínfimo .O que aconteceu?

MN: Pra nós aconteceu o que planejamos. Deu tudo certo. Prova disso é que até hoje, três anos depois, eu viajo o mundo inteiro contando essa história e recebendo vários prêmios. O nosso trabalho em agosto passado ficou entre os cem mais citados da internet, entre os mais de 2 milhões de trabalhos publicados em 2016. Ou seja, o nosso objetivo foi cumprido. Mas não tínhamos ideia nenhuma de como a Fifa iria lidar com a transmissão disso. Inicialmente eles nos prometeram três minutos, depois diminuíram para um minuto, 30 segundos, e na véspera reduziram para 29 segundos. Nós fizemos a demonstração em 21 segundos, ou seja, cumprimos nosso acordo. Nós tínhamos escrito um texto para os narradores do mundo todo lerem. Em alguns países, como Itália e Alemanha o texto foi lido, mas não no Brasil. O Brasil e a Fifa, o desprezo com que eles trataram o projeto mostra qual era o tipo de gente com qual estávamos lidando. Não é à toa que alguns deles estão hoje na cadeia, alguns afastados…

No Brasil, também, algumas pessoas foram muito cruéis. Não entenderam o esforço que foi feito e o fato de que uma pessoa com uma lesão do tipo T4 (no meio do tórax), há dez anos sem se mexer, realizou um feito histórico. Tanto que outros países vão copiar. Existem planos para as Olimpíadas de Tóquio e outros eventos. Nossa ideia era essa: usar a Copa do Mundo como uma forma de divulgar a ciência de ponta e como ela pode transformar a vida das pessoas. E esse objetivo foi cumprido. O feito foi registrado e nós publicamos em uma revista científica os resultados. Mas ficou para mim, e para todos que participaram, a sensação de descaso não só da Fifa, mas das pessoas aqui do Brasil que responderam negativamente a isto. Nós não tínhamos o controle da geração de imagens, esse era o único fator que não estava em nossas mãos. Tudo o que dependeu de nós, deu certo. Poucas pessoas aceitariam fazer uma demonstração de ciência ao vivo, com uma audiência global. O fato de termos feito isso é para mim um motivo de muito orgulho. 

JC: Sua equipe propôs o programa Educação para vida toda, que acompanha o desenvolvimento de jovens desde o pré-natal, investindo em escolas mais “científicas”. Você acha que é viável e palpável que um dia todas as escolas brasileiras sigam este sistema? Quais os resultados já visíveis?

MN: A ideia era essa. Criar um modelo, testar, ver se funcionava. Já temos mais de 11 mil crianças e os resultados são sensacionais. A ideia era que esse modelo pudesse ser levado para todo o país, primeiro em áreas de baixo desenvolvimento humano — mapeamos 11 destas no Brasil, onde o projeto teria impacto imediato. Mas depois a ideia era levar para todas as escolas de ensino médio e fundamental no Brasil. O custo é muito baixo, muito abaixo do que as pessoas pensam que um projeto deste necessitaria.  Os resultados são explosivos: a criançada começa a passar nas universidades federais, desenvolvem apego com o aprendizado, e a ciência deixa de ser uma coisa mística, assustadora. A gente mostra que a ciência é apenas uma linguagem simbólica para tentar explicar o que existe aqui, tiramos a ansiedade e o medo destas disciplinas mais exatas.

JC: Você está acompanhando os constantes cortes que a USP está sofrendo em diversos âmbitos. É um risco perdermos o título de Universidade de ponta? O que isto pode representar para nossa ciência?

MN: Eu, que sou ex-aluno, formado em medicina e também fiz pós graduação e lecionei aqui na universidade durante três anos, lamento profundamente essa situação. É uma dramática falta de visão, tanto do governo estadual, quanto do federal, pois a ciência é uma questão de soberania nacional e o Brasil está renunciando a sua. Quando você faz um contingenciamento de 45%, pelo o que eu ouvi, estrangulando a maior universidade do país, como é a USP, você mata a possibilidade de um país, uma cultura, uma sociedade ser soberana. Apesar de eu ser totalmente favorável a globalização do conhecimento, com colaborações globais, no momento atual um país que renuncia sua soberania passa a ser vassalo de outras sociedades. E é isso que o Brasil está decidindo. Quer dizer, é isso que está sendo imposto à ele. Mas o nosso silêncio, nossa passividade, principalmente da sua geração, e da geração que está vindo, é uma sentença de morte para a ciência e para o país.

JC:  Mas os jovens de hoje não são ouvidos…

MN: Sim, eu entendo o que você está falando… Passei por isso durante a ditadura militar. Mas, na minha opinião, o que estamos passando agora é pior do que a primeira fase da Ditadura de 64. Eu nunca defenderei os militares e este golpe, mas pelo menos eles tinham uma visão nacional. Eles não queriam destruir o país. O que vemos hoje é essa tentativa de destruição do país em todos os níveis, não só na ciência e na tecnologia. A comunidade acadêmica precisa mostrar pro Brasil porque é fundamental investir e manter este aparato. Nós tivemos um período em 2013 e 2014 em que vimos um recorde de investimento na ciência e tecnologia. O Brasil, de repente, tinha aparecido para o mundo.  Eu vi este reconhecimento fora do país, as pessoas começaram a falar do Ciência sem Fronteira… O Brasil virou um ‘player’, nem a China pensou em um projeto como este.  E, de repente, renunciamos a isto.

JC: O que o Brasil perde com o cancelamento do Ciência sem Fronteira?

MN: Eu acho que a gente perde o futuro. A gente perde a esperança. O que pode ser mais importante que isto?

JC: Você comentou que este programa do governo voltaria quando a “democracia” voltasse ao Brasil. Você acha que estamos vivendo um golpe?

MN: Eu tenho certeza absoluta disso. Não é um golpe tradicional, igual ao que minha geração enfrentou, mas é um golpe do século 21. É um golpe sem mortes, sem tanques na rua, como eu vi quando era criança, mas é um golpe que afetou o curso natural da democracia no país. Quando você abre essa caixa de pandora, abre a tampa, você não sabe o que pode e o que vai acontecer, as consequências podem ser devastadoras, como estamos vendo acontecer com a destruição da indústria nacional, de nossa intelectualidade, da educação e com a insegurança jurídica completa. É a remoção de qualquer expectativa para um futuro melhor. Quando você tira deste grande número de jovens a expectativa de uma vida melhor do que à da geração que os precedeu, é complicado.

JC: O que falta para a ciência brasileira ser um “agente de transformação social”?

MN:  Falta ela querer. Falta ela se manifestar. Quando o Brasil estava investindo em ciência, dando muito dinheiro, há quatro anos, um projeto como o nosso, lá na periferia do Rio Grande do Norte, era extremamente criticado. Nós fomos atacados de todas as formas, inclusive de pessoas aqui da USP. Muitos foram aos jornais e revistas internacionais reclamar do nosso projeto quando o que estávamos fazendo era cuidar de mulheres grávidas, educar crianças e fazer pesquisa em um lugar que ninguém quer ir. Nós construímos um núcleo de altíssima qualidade de ciência como transformador social. Um pequeno imã de excelência em um lugar que nunca viu isso e, mesmo assim, fomos massacrados pelos cardeais da ciência brasileira. É o medo, o terror da competição de alto nível e de uma proposta que traz a sociedade para dentro da universidade e que mostra a esta população excluída que a ciência pode ter efeito em suas vidas. Eu vivi aqui, tenho vínculos profundos com esta Universidade,  mas eu me pergunto, quem mora em torno da USP, o que eles sabem daqui? Eu conheci pessoas maravilhosas aqui que tentaram  expandir a universidade para o povo, mas sofreram muito. O fato de eu querer voltar para o Brasil e levar a ciência para um lugar que ninguém iria ou foi até hoje, fez com que muitos tentassem destruir esse projeto. Para mim foi chocante, ainda não me recuperei desse trauma. Este provincianismo, egoísmo e elitismo tem que sair da ciência brasileira. Agora estamos indo para as ruas reclamar sobre estes cortes que estamos sofrendo na universidade, mas quantas vezes já fomos para as ruas para convidar a sociedade para participar das nossas atividades e desfrutar dos benefícios da ciência? Esse é o problema, esse elitismo deve ser rompido. Você pode ser rigoroso, ser um bom cientista e ainda assim comunicar o que você faz para a sociedade.