Cotas trazem desafios ao meio acadêmico

Com a nova medida, presença mais efetiva de grupos minoritários exige mudanças na USP

Por Daniel Miyazato

No dia 4 de julho deste ano, o Conselho Universitário (CO) aprovou a adoção progressiva de cotas sociais e raciais. A decisão foi amplamente comemorada por diversos movimentos de luta social e grande parte dos alunos. A partir do ano que vem, portanto, espera-se uma presença cada vez maior de estudantes negros, indígenas e pregressos de escolas públicas pelas salas de aula da Universidade. Este cenário coloca questionamentos de como a trajetória deles transformará as estruturas epistemológicas da instituição e a distribuição do corpo docente.

Para Fernanda Rodrigues de Miranda, doutoranda da Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas (FFLCH), com tese sobre escritoras brasileiras negras, o fato da USP ter sido a última universidade paulista a adotar cotas é simbólico de uma tradição exclusivista. Com a entrada maior de grupos historicamente marginalizados, Miranda prevê a chegada de olhares diferentes, que inevitavelmente passam pela experiência social.

“A história sempre foi escrita por quem tem o poder de formular as narrativas e, portanto, de construir verdades. Esses grupos sempre foram colocados como temas, nunca como sujeitos do conhecimento”, argumenta a pesquisadora da FFLCH. “A questão é que isso precisa atingir a Universidade como um todo. São assuntos que devem chegar à Escola Politécnica, à Faculdade de Direito, às Ciências Políticas, à Medicina. Não adianta nós pensarmos somente nas artes em um sentido de representação, porque isso é apenas uma parte do problema. Quando esses sujeitos chegam ao núcleo do processo de construção, a realidade muda.”

Histórico 

A Universidade de São Paulo foi fundada em 1934. Naquele início da década de 30, o estado de São Paulo havia recentemente sofrido uma grande derrota política no cenário nacional. Parte das elites paulistas, então, buscaram recuperar o prestígio pela via acadêmica. A iniciativa tinha um caráter de vanguarda, uma vez que surge enquanto a ideia de universidade estava em construção no país.

Em sua tese de 2015 pela Faculdade de Educação (FE), a doutora Viviane Angélica da Silva traçou um perfil do corpo docente da USP ao longo de sua história. “São Paulo vem de uma tradição bandeirantista. É um estado que faz muito louvor ao seu passado bandeirante. Podemos ver muitos monumentos em homenagem a esta época, que, eu acredito, violentam a memória de outros povos. O bandeirante é braço de massacres. E a USP declaradamente se propunha a essa missão bandeirante, de civilizar um país inculto. Há essa contradição: ao mesmo tempo em que ela aparece como algo moderno, estava assentada em bases racistas e elitistas”, avalia a pesquisadora.

A presença de grupos minoritários, na opinião das duas estudiosas, dinamiza o campo de pesquisa acadêmica. Algo notável que a tese de Silva constatou é que a Universidade, desde de antes de ser USP, quando se resumia à Faculdade de Direito, já realizava estudos de cunho racial. “Porém, quem os faziam eram pessoas racistas ou completamente alheias à experiência, com raras exceções. E isso conta muito. Acho que, a partir do momento em que professores negros começarem a assumir lugar de pesquisadores, eles trarão outras perspectivas e abrirão portas para que outros também somem à pesquisa”, ressalva Silva.

A Universidade Federal de Minas Gerais aprovou, em maio deste ano, a reserva de vagas em programas de mestrado e doutorado para negros, indígenas e pessoas com deficiências. As medidas passam a valer no primeiro semestre do ano que vem. O caso é tomado pela doutora do FE como um exemplo a ser seguido pela USP. “Temos esperança de que as cotas aumentem o acesso da população negra aqui. No entanto, vendo como foi custoso conseguir cotas para o corpo discente, quando se sobe nos estratos da universidade, o conflito tende a acirrar. Já estamos formando um número significativo de pós-graduandos negros, mas a USP não os tem absorvido”.

Indígenas como agentes do conhecimento

Por Gustavo Drullis 

Danilo Guimarães é um dos dois professores indígenas da USP (foto: Querido)

Danilo Silva Guimarães, professor do Instituto de Psicologia (IP) e único docente indígena da USP, acredita que a diversidade no corpo docente da universidade pode agregar no processo de construção do conhecimento. “O pesquisador sempre vai buscar construir conhecimento sobre temas que o inquietam. Ter a diversidade de pessoas na universidade permite também a ampliação da diversidade de possibilidades de construção de conhecimento”, afirma.

Para o docente, décadas de atraso do governo brasileiro em reconhecer o indígena como um cidadão  pleno de direitos são uma das causas da pouca representatividade de indígenas no corpo docente da USP. “A partir da constituição de 1988, começam a se desenvolver projetos numa outra direção, em que os indígenas poderiam se autoafirmar e ao mesmo tempo participar como cidadãos nas diferentes esferas da sociedade, inclusive a universidade”, diz o docente. A adoção de cotas, seria, para ele,  um exemplo dessa mudança de perspectiva, que pode fazer estudantes de graduação indígenas se interessarem pela pós-graduação, e seguirem, posteriormente, a carreira docente.

Caberia à Universidade, na opinião do professor, ter um papel mais ativo em direção às comunidades, dialogando com as lideranças e compreendendo qual é o sentido que o ingresso na universidade tem para elas. “Algo que não seja somente uma entrada dentro de uma perspectiva assimilacionista”, ressalta o docente.

O professor também coordena a Rede de Apoio à Pessoa Indígena no IP, programa que conta com participação ativa de alunos do curso de Psicologia.  Danilo conta que tudo começou em 2012, como uma proposta de escuta. “A ideia era de compreender, a partir do ponto de vista das comunidades, quais eram as dificuldades que eles estavam enfrentando”.  Com as conversas iniciais, principalmente com as lideranças das comunidades,  o grupo conseguiu identificar que algumas das questões que os  indígenas traziam eram decorrentes de uma situação de vulnerabilidade que continha aspectos psicossociais.

Guimarães comenta que questões ligadas a preconceitos, à demarcação de terras e a sofrimentos decorrentes da dificuldade de manutenção do modo de vida tradicional são geradoras de grande sofrimento, porque a comunidade se sente muito insegura em relação a poder ocupar o espaço que ela ocupa. “Isso vai gerando uma situação de grande tensão, que se desdobra em todas as relações comunitárias”, diz Guimarães.

Do ponto de vista da construção teórica, o intercâmbio entre a universidade e as populações indígenas permite que se construa conhecimento de forma singular, mais próximo à realidade social do Brasil. “Em vez de a gente reproduzir as teorias que são construídas em supostos centros intelectuais do mundo, as universidades europeias e norte-americanas, ao afinar esse diálogo com os indígenas, temos condições de trazer um olhar e perspectivas que podem ser inovadoras para compreender o mundo contemporâneo”, diz.

“A partir desse olhar para cultura do outro, da alteridade, sem a pretensão de eliminar ou acomodar  as diferenças numa ideia de um plano de comunalidade, vivendo com o outro e suas diferenças, se pode também olhar para si, se perceber como diferente e perceber aspectos de si que não seriam compreendidos sem essa relação”, explica.