Receita de Bolo de Laranja

Por Claire Castelano

Há quem diga e acredite que vivemos em um período de liberdades democráticas. Esse tipo de visão está relacionada a uma análise comparativa, que olha para os períodos mais sombrios da história e considera como os mais perigosos aqueles nos quais preponderaram estados de exceção com mecanismos impositivos de repressão e controle.

No Brasil, fica cada vez mais claro que vivemos com a ilusão da liberdade de expressão. Sim, é fato que não temos mais censores nas redações dos jornais, mas, também é fato que a galera do marketing tem estudos de mercado consolidados sobre o que o público leitor quer: o que manda nas redações é a audiência. E, desde a última vez que verifiquei, interesse público ainda era diferente de interesse do público.  

Já está mais que discutido e rediscutido o potencial destrutivo que a autocensura carrega. Quando ideias subversivas param de ser produzidas ou mesmo veiculadas, acaba-se a chance de se questionar e mudar o sistema: entramos na zona de conforto social e os que já não têm voz deixam de existir. Um ambiente no qual a hegemonia não é contestada é tóxico.

Ainda assim, continuamos a acreditar que vivemos em um período melhor só porque não é a máquina do Estado que determina o que pode ou não ser publicado. A censura é brutal em qualquer dimensão, mas a censura invisível e normalizada dilacera a sociedade – ela não é percebida como impositiva e muitas vezes se maquia de escolha de mercado.

Escolha? É possível dizer que há escolha quando a meta é agradar a todos com o intuito de lucrar?

Recentemente vivemos o fechamento da exposição Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira patrocinada pelo banco privado transnacional Santander. Com curadoria de Gaudêncio Fidelis, a exposição tinha como mote a diversidade e as questões LGBTQIA.

“Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana”, dizia o comunicado de cancelamento. Surpreende-me que tanto as críticas ao fechamento quanto a “justificativa” oficial apelam para o direito positivo, ou seja, para censura da arte. As questões que me vem, em contraponto, são: Por que o Estado permite, com isenção fiscal, que agentes do mercado definam e operem a política cultural de um país? Que arte poderá ser concebida a partir desses parâmetros?

Nem precisamos ir tão longe e comparar o ocorrido com o ideário de arte bela e pura que rondava na Alemanha Nazista. Não foi a primeira vez que grupos organizados reagiram a exposições que, na visão deles, subverteram valores tradicionais das “pessoas de bem”.  Esta, na verdade, parece ser uma tendência que veio para ficar.

Sejamos honestos: no que pensa um banco? Em lucro! Em lucrar com a imagem criada pelo marketing, alimentado por verbas oriundas de recursos públicos. E agora te pergunto, caro leitor: não é censura boicotar a arte que prejudica a saúde das planilhas financeiras?

O Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) se define, por sua vez, como instituição particular sem fins lucrativos. É por essa definição que me choca o fato de a mídia nacional ter gasto toda sua cobertura cultural da semana falando sobre o fechamento do Queermuseu e dando apenas notas sobre as cortinas pretas do MASP. Na mesma época em que a censura se instalava em Porto Alegre, o MASP cobria com panos pretos as obras da exposição retrospectiva de desenhos e pinturas de Pedro Correia de Araújo que organizava, a qual contava com desenhos de “cenas eróticas”. Talvez fosse melhor ter coberto com páginas de Os Lusíadas.

A autocensura do MASP, mesmo que não assumida, revela uma patologia social que assola o Brasil. Não precisamos de ditadura para nos mostrar o que deve ser censurado: a moral reacionária se enraizou na nossa práxis coletiva.

Amedronta-me saber da existência de pessoas que ainda veem a era digital como expressão máxima da liberdade, uma vez que esse mecanismo de censurar tudo o que vai contra a ordem estabelecida achou lugar para florescer no solo fértil das redes sociais. Nesse mundo imaterial ao qual a internet nos deu acesso, tudo é permitido: minha liberdade pode atropelar a sua e, se a sua liberdade me incomodar, posso te chamar de esquerdista e organizar um escracho social contra você. É nesse ambiente disciplinar e punitivo que a autocensura opera. Não precisamos de DIP, temos os guardiões da internet para aniquilar tudo o que vai contra a moral e os bons costumes da família tradicional burguesa cristã – são as novas roupas da censura.

O discurso dominante das elites não permite nenhuma outra expressão de pensamento. É nesse sistema que o jornalismo e a arte perdem o sentido. Caminhamos para a consolidação de um estado de exceção permanente no qual a combalida democracia já não pode dar vazão a nada que possa significar qualquer ruptura com o sistema dominante. Esquerda e direita operam sob a mesma lógica e não podem, de fato, transformar nada.

Não existe arte sem subversão. Não existe jornalismo onde apenas vira notícia aquilo que tem relação com o lucro. Não existe democracia sem arte e jornalismo.