Quando o ritual do casamento vira espetáculo

Célebre matrimônio de Marina Ruy Barbosa revela nuances das relações interpessoais de hoje

Arte: Daniel Miyazato

Por Daniel Miyazato

No dia 7 de setembro, a atriz Marina Ruy Barbosa finalizou uma série de cerimônias de casamento com o empresário Alexandre “Xandinho” Negrão. Foram quatro celebrações entre bênçãos budistas na Tailândia, cerimônia católica e civil, e a última grande festa, com direito a show da cantora Anitta e do DJ Alok e vestido de noiva exclusivo da grife italiana Dolce & Gabbana.

Tamanha opulência gerou grande repercussão na imprensa e nas redes sociais. As fotos da última celebração no Instagram da atriz alcançam, em média, 1.1 milhão de curtidas e os portais de entretenimento ficaram em polvorosa com o evento.

A avalanche de conteúdo de mídia produzida e propagada por um único casamento é sintomático do momento cultural vigente. Segundo o professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP), Eneus Trindade Barreto Filho, o ritual do matrimônio hoje, no caso da celebridades, atende aos interesses de uma indústria que favorece tanto as próprias celebridades quanto as empresas que organizam a festa. Para o especialista, “a lógica midiatizadora de propagabilidade e promocionalidade faz do casamento um acontecimento, sobretudo em se tratando de alguém célebre.”

Ainda de acordo com Eneus Trindade, muitas pessoas gostariam de ter um casamento como o da Marina Ruy Barbosa. Neste ponto, a professora de filosofia Olgária Chain Féres Matos, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH – USP), discorda no sentido de não se tratar da criação de um modelo de casamento. Para a filósofa, qualquer pessoa com as mínimas condições financeiras, se quiser, pode se endividar e fazer um evento como o da atriz. Não se tem, portanto, um distanciamento próprio de um mito, condição necessária para a sustentação de um sonho. Para a professora, há um desencantamento com o mundo, que torna tudo prosaico e passageiro e, nesse contexto, a cerimônia de casamento de uma celebridade passa a servir apenas ao mercado visual. “Serve ao consumo das imagens, de notícias. É algo feito para ser consumido e esquecido no momento seguinte, e ser substituído por um novo espetáculo e assim se mantém o mercado midiático em funcionamento. Faz parte do noticiário que repete à exaustão as mesmas cenas, as mesmas matérias, porque não há nada de novo, então a repetição preenche o vazio”, avalia.

Para além das celebridades, Olgária Matos analisa que a instituição do matrimônio perdeu sua característica de durar por toda a vida. Deixou de ser um ritual ao qual as pessoas se referem em todos os momentos em que há dificuldade ou novidade, não é mais a referência que divide a vida em antes e depois, “é um dia qualquer da rotina, algo que pode se desmanchar no dia seguinte.”

A professora percebe essa mudança a partir do final da Segunda Guerra Mundial, quando as mortes em massa desestruturaram inúmeras famílias. Neste contexto, instituições sociais como a igreja, a escola e o próprio matrimônio, viram seu caráter de coesão social – garantidor de conforto, orientação e pertencimento – gravemente combalido. Somado a isso, acrescenta a estudiosa, as formas do capitalismo aceleraram o tempo, de maneira que as relações interpessoais ficaram comprometidas pelo curto prazo, tanto que o amor não mais tomado como eterno e sim como breve.

Toda esta mudança nas estruturas da sociedade se alinham, argumenta Olgária Matos, ao comportamento mais narcisista de hoje. Voltadas ao próprio ego, as pessoas também são menos resilientes a frustrações, conta a professora. Dessa forma, no caso do casamento, há um contrato formal de permanecer juntos somente enquanto o relacionamento corre bem, sintoma de uma tendência que permeia todas as relações sociais. “Qualquer dificuldade leva ao abandono, ao gesto violento, ninguém mais sabe se defender oralmente. É uma sociedade da ‘passagem ao ato’. Tudo está muito ligado a uma ideia de impulsividade.”

A estudiosa ainda conta que o casamento como instituição significava um compromisso do casal não somente no âmbito particular. Tratava-se de uma iniciação à arte de viver em público. “A partir do momento em que se perde este sentido, de instituição social destinada a transmitir valores e a perpetuar um tipo de sociedade, o matrimônio passa a ser um acordo apenas entre duas pessoas. A ideia de um círculo mais amplo de convívio social é substituída pela vontade subjetiva de cada um dos participantes”.

Pela visão de Olgária Matos, tem-se hoje uma instituição social muito diferente de seus primórdios. O professor Eneus Filho recorda que as festas de casamento fazem parte de várias tradições culturais e aquela que predomina no ocidente é herdeira do padrão judaico-cristão. Seriam cerimônias importantes para a reafirmação de laços civilizatórios de grupos sociais, complementa Eneus.

Neste sentido, a professora de Estudos da Bíblia Hebraica, Suzana Chwartz, da FFLCH, relata que na sociedade da Bíblia Hebraica, também conhecida como Antigo Testamento, o casamento servia para consolidação de núcleos de identidade judaica, por isso era preferível a união consanguínea.

A estudiosa descreve que o matrimônio era uma transação comercial entre o pai da noiva e o noivo, em que se negociava o dote. Ao final do processo, o marido passa a ter a propriedade sobre a capacidade reprodutiva da esposa. Suzana Chwartz explica que apesar da mulher ser enclausurada no casamento, era somente dentro deste que ela teria um papel e seria respeitada.

Quanto ao sexo no casamento, a especialista conta que sua prática não era condenada. Era considerado como a maneira de concepção do “crescei e multiplicai-vos” e o prazer era bem-vindo. A vida celibatária torna-se desejável a partir de influências greco-romanas, esclarece a professora. A ideia do pecado original que leva à condenação não apenas do sexo, mas também da mulher, surge com os cristãos.

Portanto, o casamento foi ressignificado ao longo dos séculos. Antes uma instituição muito mais atrelada ao público, hoje está mais íntima que questões subjetivas, em consonância com a velocidade acelerada do tempo em uma realidade altamente midiatizada.