Desrespeito aos direitos humanos não zera mais redação do ENEM. E agora?

(Arte: Mariana Rudzinski)

Especialistas discutem argumentos utilizados para revogação de cláusula polêmica do exame

Por Liz Dórea

Combater a doutrinação ideológica nas escolas e universidades: é esse o objetivo político do Escola Sem partido, organização responsável pela ação pública que suspendeu, a dez dias do exame, a cláusula do edital do ENEM que zerava redações desrespeitosas aos direitos humanos. No ano passado, 4.798 redações, 0,08% do total foram anuladas por esse motivo. Afinal, qual a pertinência do pedido que obteve às pressas uma decisão favorável do Supremo? Em face de especialistas, o JC jogou luz nos principais argumentos explorados pelo texto judicial.

 A regra viola o direito à liberdade de expressão

“Quem afirma que viola está, ao mesmo tempo, dizendo algo óbvio e expressando uma má compreensão da liberdade”, explica Conrado Mendes, professor de Direito Constitucional da USP. “É evidente que restringe a liberdade de expressão dizer a um aluno racista que ele não pode proferir essa opinião numa prova. Todos os nossos direitos podem sofrer restrições. Cabe saber se elas são justificáveis ou não.”

O jurista explica que se trata de uma discussão clássica de conflitos entre direitos. O artigo quinto, que protege a livre manifestação do pensamento, apenas proclama direitos. Nesse sentido, eles não podem ser todos maximizados ao mesmo tempo. Algum tipo de acomodação precisa existir, mas a sutileza está em conseguir traçar uma linha que mensure quão aceitáveis são restrições impostas ou não à cada um deles. “Direitos conflitam entre si. A liberdade, por exemplo, sempre vai estar em conflito com algum outro tipo de direito. É uma premissa conceitual básica: não há liberdade absoluta. Mas essa premissa é só o começo.”

Para a professora de educação da USP, Carlota Boto, esse limite da liberdade é a própria liberdade do outro. “A ideia básica da ética é a capacidade que todo sujeito tem de se colocar no lugar do outro. Então, a boa piada é aquela que a gente pode rir com o outro, não do outro. O bom comportamento em relação aos direitos humanos, nesse sentido, tem a ver com essa alteridade.”

É um critério ideológico

“É óbvio que há um aspecto ideológico nos direitos humanos porque há uma tomada de posição moral”, esclarece Conrado. “A constituição não é neutra. Quando ela protege a liberdade de expressão, a dignidade e a não-discriminação, ela não está sendo neutra. Não dá pra ser neutra ao proibir a tortura, abolir a escravidão e condenar práticas violadoras de direitos humanos. Ninguém está livre da ideologia. E nada mais ideológico do que dizer que o outro é ideológico.”

Frequente nos discursos da Escola Sem Partido, o tema da ideologização do ensino mobiliza um dos princípios do programa educacional proposto pela associação: a neutralidade política, ideológica e religiosa. “Um ensino neutro não é possível”, arremata Carlota. “A noção de um ensino neutro é um ensino sem valores. Mas um ensino sem valores já está assumindo um valor. E os valores são generosos ou perversos. A questão é saber quais desses escolheremos.”

Há pouca clareza nos objetivos do edital

O terceiro ponto que ilegitimou a regra diz respeito ao grau de subjetividade no texto do edital. De acordo com Rômulo Nagib, advogado responsável pela ação, a cartilha não oferece referenciais consistentes sobre como alunos e corretores devem se comportar em relação aos Direitos Humanos. O JC procurou saber quais são as diretrizes pelas quais são corrigidas as provas para entender se a cláusula afeta a consistência e a objetividade do ofício do corretor.

“A correção de um texto não é subjetiva. É um trabalho tecnicamente estruturado”, esclarece Denise Masson, doutora em semiótica e linguística pela USP e especialista em produção textual. “Desenvolvemos uma série de critérios nas avaliações de larga escala para garantir que o candidato seja preservado da subjetividade do corretor. Avaliamos o desenvolvimento do raciocínio lógico, a estrutura, o vocabulário, o número de deslizes, enfim: não é uma questão subjetiva. Assim como não é subjetivo avaliar se ele respeita ou não respeita os direitos humanos.

A especialista, que também é estudiosa da prova do ENEM e já foi corretora em outros vestibulares de larga escala, defende que existe um desconhecimento superinflacionado sobre como esses grandes exames funcionam. “O corretor do ENEM não é um sujeito autônomo, que dá a nota que quer. Ele tem que obedecer a uma grade, que possui níveis descritivos sobre como o redator está se comportando na prova. Todas as notas que ele atribui são checadas de acordo com essa grade.”

Para Carlota, o aluno do ENEM pode não reconhecer as cláusulas específicas da Declaração, mas não convém dizer que ele não tem consciência do impacto do próprio discurso. “Se ele tivesse dez anos, poderíamos argumentar isso, mas o estudante que presta o exame está chegando à sua maioridade. Nesse sentido, precisa assumir uma postura cidadã, que preze pelos direitos humanos. É pedagógica a regra que anula a prova daqueles que desrespeitam.”

Perspectivas e possíveis consequências da revogação

Do ponto de vista prático, Conrado julga que a regra, por si só, não é efetiva em coibir o ferimento dos direitos humanos e enfatiza a necessidade de encampar o debate nas salas de aula. ‘Temos uma missão de educação de direitos humanos muito inacabada, muito incipiente. Havia gente na frente do Sesc Pompeia queimando uma boneca da Judith Butler porque queriam proibir que ela falasse em São Paulo. Não há uma cultura de direitos no Brasil e isso não é responsabilidade do judiciário sozinho. É preciso estar nas escolas, nas faculdades de direito, no ensino universitário como um todo. Educação para a democracia e educação para os direitos humanos são coisas complementares e interdependentes.”

Com vistas nessa proposta, Denise resgata princípios fundadores do exame. “O ENEM vem desde 1998 tentando dizer à sociedade que não adianta nada formar um estudante que seja academicamente brilhante, mas que não tenha condições de colaborar com a construção de uma verdadeira democracia.”, lembra ela sobre as bases originais da prova. “Tinha o propósito de avaliar de que forma a escola brasileira havia produzido cidadãos de 18 anos capazes de conduzir as própria vida e pensar coletivamente a sociedade brasileira. São objetivos diversos, porém complementares.”

Dos últimos cinco temas da redação do ENEM, quatro abordaram, de forma direta ou transversal, questões caras às minorias e exigiram algum grau de empatia dos participantes: movimento imigratório para o Brasil no século 21, a persistência da violência contra a mulher, caminhos para combater a intolerância religiosa e, o mais recente, desafios da educação de surdos no Brasil.