Sem acompanhamento médico e na ilegalidade, Misoprostol pode ser perigoso

Descriminalização do aborto no Brasil está em discussão no STF. Segundo Pesquisa Nacional do Aborto, metade das mulheres aborta usando medicamentos

Ilustração: Juliana Santos

Por Giovanna Costanti

Uma em cada cinco mulheres brasileiras de até 40 anos já fez pelo menos um aborto. São cerca de 5 milhões de mulheres segundo a Pesquisa Nacional do Aborto. Para muitas que o praticaram, um nome de remédio é comum: “Cytotec”.

Esse nome apareceu nas audiências públicas realizadas no início de agosto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para debater a descriminalização do aborto até a décima segunda semana de gestação.

“Cytotec” é a forma comercial de se tratar o Misoprostol, criado para combater úlceras. Nos anos 90, vendido sem receita e por preço baixo nas farmácias, virou abortivo. Um dos seus efeitos colaterais é provocar contrações uterinas.

O acesso ao remédio, no Brasil, é clandestino. A ilegalidade dá margem à circulação de versões falsificadas, ao uso incorreto e, algumas vezes, letal da medicação.

Se utilizado sob supervisão médica, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que o Misoprostol é um método seguro. Casos drásticos, em condições precárias, fazem vítimas da criminalização a cada dois dias e poderiam ser evitados.

“Fiz o certo”

“Minhas mãos tremiam enquanto eu digitava”, conta C., hoje com 23 anos. Há dois anos, grávida, mãe solteira de filha com dois anos, sem condições de sustentar outra criança e morando com a mãe desempregada, a jovem procurou pelo “Cytotec” na internet.

Eu estava desesperada e não sabia o que fazer. Lá no grupo, as histórias me deram medo, mas também alívio”, conta.

C. conhecia o nome do remédio. Surpresa, encontrou vários grupos sobre ele no Facebook. Ela leu relatos como “estou com dor de barriga, alguém pode me ajudar?” – a “dor de barriga” é codinome para pedidos de socorro.

Ela também descobriu que a moderadora do grupo vendia Cytotec, vindo de fora do país ou desviado de hospitais. “Perguntei quantos eu deveria tomar e ela me mandou uma tabela com as semanas e o número de pílulas correspondentes”.

Com seis semanas, foi recomendado que C. tomasse seis pílulas. Cada uma sairia por R$125. Com dinheiro emprestado da mãe e do ex-namorado, ela comprou e tomou os comprimidos, seguindo recomendações de mulheres no Facebook, que acompanharam os relatos “ao vivo”, digitados pela jovem de hora em hora.

Não foi nada fácil: C. sofreu três desmaios, cólicas, quedas de pressão e diarreia, até que abortouAinda precisou ser levada ao hospital para fazer “curetagem”, procedimento comumente realizado após abortos espontâneos.

Ilustração: Camilla Cossermelli

Uma das mulheres que acompanhava sua jornada de 13 horas pelo Facebook a alertou para, no hospital da rede pública, alegar ter sofrido aborto espontâneo. C. conta ter sofrido violências psicológicas e até físicas das enfermeiras. “Me senti desamparada e tive medo de morrer. Quando cheguei ao hospital, o medo era sair de lá presa. Já pensou? Com uma filha lá para criar… Mas apesar da dor e depois das horas de terror, ainda não me arrependo da decisão. Fiz o certo.”

 

“Sangrei por quase uma semana”

Apesar da gravidade do relato de C., a jovem teve sorte. No mesmo grupo virtual frequentado por ela, chovem histórias de procedimentos que não deram certo. Há venda de pílulas falsas, como aconteceu com Cl., 28 anos, que desembolsou mil reais em oito pílulas que não fizeram efeito.

“Depois disso, fui tirar satisfações e o perfil da vendedora no Facebook sumiu. No Whats ela não responde mais. Vou tentar comprar novamente, de outra pessoa”, conta.

L., 17 anos, relata que, apesar do procedimento longo e doloroso, não conseguiu realizar o aborto e seguiu com a gravidez. “Sangrei por quase uma semana e resolvi fazer um ultrassom. O remédio não funcionou e me causou uma anemia, por perda de ferro. Acabei ficando com medo de tentar outro método.”

*nomes alterados para preservar as entrevistadas

Aborto legalizado na França ainda gera constrangimento

Por Lucille Polizzi

O direito ao aborto na França foi conquistado em 1975, pelas mãos da ministra da saúde, Simone Veil. Nesse país, os centros de planejamento familiar visam a apoiar a sexualidade da população, especialmente a dos jovens. Eles oferecem ações preventivas, prescrevem contraceptivos, disponibilizam exames ginecológicos e praticam o aborto gratuita e anonimamente.

A universitária francesa Índia, de 20 anos, soube de sua gravidez em um desses centros. Na consulta, o médico apresentou duas opções: continuar ou interromper a gestação. Ela escolheu interromper.

O passo seguinte foi fazer exame de sangue e uma segunda consulta no hospital. Duas semanas depois de saber da gravidez, Índia tomou o primeiro comprimido para interrompê-la. Dois dias depois, foi internada para tomar a segunda pílula, para evacuar o feto.

Ilustração: Camilla Cossermelli

Então enfrentou dificuldades. Ela relata a falta de atenção dos cuidadores e a impressão de ser tratada como um número. Índia não entendeu grande parte do que acontecia, os profissionais da clínica não respondiam suas dúvidas.

“Os médicos estavam constantemente mudando, o que me obrigou a repetir minha situação para dezenas de pessoas”.

Ela denuncia que “mais de 10 ultrassons” foram feitos, “quase todos os dias”, obrigando-a a ver sua gravidez evoluir diariamente. Segundo um ginecologista que consultou mais tarde, apenas um ultrassom teria sido o suficiente.

Índia afirma, ainda, que ouviu falas e presenciou ações para desencorajar seu aborto. “Uma médica me forçou a fazer um exame vaginal na frente de três estudantes”, relata.

“Quando eu perguntei se eles poderiam sair, porque eu estava envergonhada, ela se recusou e fez um ultrassom na barriga pressionando com força e me machucando. Eu saí traumatizada.”