Entrevistamos três especialistas em ciência política sobre as eleições

Steven Levitzky, Everaldo Andrade e Adriano Gianturco falaram sobre suas visões do momento atual no Brasil

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Por Thais NavarroCaio Mattos Bruno Carbinatto

Steven Levitsky: “Sim, o Brasil está vulnerável”

Steven Levitsky é professor de ciência política na Universidade de Harvard, em Massachusetts, Estados Unidos. Suas áreas de estudo incluem autoritarismo e democratização, com foco na América Latina. Levitsky lançou este ano, com o também professor de Harvard Daniel Ziblatt, o livro Como as Democracias Morrem, best-seller do The New York Times, que discute casos emblemáticos de rupturas democráticas recentes ao redor do mundo.

JC: Em seu livro, você diz que as democracias estão entrando em colapso por vias democráticas. É o caso do Brasil?

Sim, definitivamente o país está em risco. O Brasil tem instituições democráticas muito fortes, e tem muitas chances de sobreviver a essa crise. Mas o Brasil vem passando por uma crise extraordinária ao longo dos últimos três, quatro anos. E o nível de polarização entre a esquerda e a direita é perigosamente alto e o líder de pesquisas, Jair Bolsonaro, é uma figura claramente autoritária. Não está comprometido com regras, leis democráticas. Penso que é um grande risco à democracia. Então sim, o Brasil está vulnerável.

JC: As democracias na América Latina são frágeis?

Elas variam muito entre si. As democracias em países como Equador e República Dominicana, Guatemala, Honduras são historicamente muito fracas e vulneráveis. Bolívia também. Então, há algumas democracias que poderiam entrar em colapso muito facilmente. Há outras, como Uruguai, Costa Rica, Chile e eu diria que Brasil e Argentina que são mais fortes. Não é como uma Suíça, mas a democracia brasileira é também difícil de se matar. O Congresso e o judiciário brasileiros se desenvolveram em instituições sérias, o Brasil tem uma sociedade civil e uma cultura democrática muito mais desenvolvidas do que no passado. Não se aceitaria um movimento rumo ao autoritarismo passivamente. Isso não significa que o Brasil não esteja vulnerável a um colapso democrático, mas é difícil.

JC: Você acha que poderíamos fazer um paralelo entre as eleições brasileiras e outras que aconteceram recentemente na América Latina, como a de Iván Duque na Colômbia e AMLO no México?

Em todos esses três países, mas particularmente Brasil e México, há muito descontentamento com o status quo. No México, o mesmo partido tem estado no poder nos últimos 18 anos de democracia. Há muito descontentamento com o status quo, então não é de se surpreender que os eleitores que estejam descontentes tornem a olhar para uma alternativa de centro esquerda, no caso do México. No Brasil, é o oposto. A situação econômica está terrível, está num dos piores escândalos de corrupção na história do mundo democrático, o status quo está terrível nos últimos dias. Então não é de se surpreender que muitos eleitores se virem para a direita. E as pessoas votam em outsiders que se mobilizem contra o establishment quando as coisas não estão indo bem, e as coisas não estão indo bem no México e no Brasil.

JC: Como você vê a polarização política no Brasil?

Nos últimos três anos, vem sendo muito significativa. O PT agora vê a maioria de seus oponentes de centro direita como golpistas. Muitos dos petistas acreditam que seu partido foi tirado do poder em 2016 de maneira ilegítima, que seu líder foi tirado da corrida eleitoral de 2018 de forma ilegítima. Mas ambos os lados agora veem uns aos outros como atores que não jogam seguindo as regras democráticas. Esse é um lugar assustador para se estar.

JC: Algumas pesquisas de intenção de voto mostram uma porcentagem muito grande de votos brancos e nulos. Há alguma explicação para isso?

Ao longo dos últimos quatro anos, o Brasil tem passado o que pode ser o maior escândalo de corrupção entre todas as democracias. Ao mesmo tempo, a economia passou por uma de suas piores recessões. Então, a performance governamental no Brasil tem sido horrível. E algumas pessoas estão bravas, frustradas, e uma forma de expressar isso é anulando ou deixando o voto em branco. Os argentinos fizeram exatamente o mesmo em 2001. Quando a Argentina estava escorregando para uma crise profunda em 2001 e 2002, uma crise talvez comparável à brasileira, o nível de votos brancos e nulos foi extraordinariamente alto nas áreas urbanas. É uma expressão de níveis muito altos de frustração com a política.

JC: Em seu livro, comenta-se sobre como políticos autoritários chegaram ao poder por vias democráticas. Cidadãos em outras partes do mundo poderiam aprender com essas experiências. O Brasil aprenderá com as experiências?

Há certos sinais. Algo que as pessoas podem fazer é observar e ver se os políticos usam um discurso antidemocrático em suas campanhas. Há uma grande chance de que, uma vez no poder, eles ataquem as instituições democráticas  Logo, a coisa mais importante que os cidadãos podem fazer é identificar políticos perigosos e não votar neles, não os eleger. Jair Bolsonaro é uma ameaça às instituições democráticas. Então, a primeira coisa que os brasileiros podem fazer é identificar os autoritários e fazer melhor do que os norte americanos fizeram e não os elegerem, diferentemente do que fizemos com Donald Trump em 2016. Outro conselho é não seguir o que eu chamaria de uma tentação populista. Populistas são mestres em mobilizar a ira pública contra a elite. Nas democracias, sempre há momentos em que a situação está ruim. Quando o público está bravo e frustrado, por causa de corrupção, má governança, um governo ruim. Toda democracia no mundo encara momentos de crise e de ira pública. Os populistas apelam para esta raiva e essa frustração e dizem aos eleitores “votem em mim e eu vou atacar a elite”. Eles atacam o establishment político, que é muito impopular. É o que os populistas fazem em qualquer lugar do mundo: foi o que fizeram os ex-presidentes Hugo Chávez [na Venezuela], Alberto Fujimori [no Peru], Juan Perón [na Argentina] e Rafael Correa [no  Equador]; e o que fazem os presidentes Recep Erdogan [na Turquia], Evo Morales [na Bolívia] e Trump. E é o que Bolsonaro está fazendo agora. Os eleitores irritados vão se virar para alguém que prometa atacar as elites. O problema é que, quando os populistas são eleitos, eles tendem a minar as instituições democráticas, a causar-lhes um grande estrago. Praticamente sempre.

JC: Comenta-se que essas eleições são únicas no Brasil, você concorda?

Sim. Democracias sempre passam por tempestades — o crucial é ser capaz de sobreviver a elas, preservando as instituições e os direitos democráticos até a tempestade passar. E esse é um momento de crise, em que os cidadãos brasileiros, mas particularmente os políticos, precisam perceber que se deve agir de maneira responsável. Eles tem que pensar no bem estar do país de longo prazo, assim como nas instituições democráticas. Nos Estados Unidos, em 2016, nós elegemos alguém que, a partir de qualquer padrão ou medida, é inapropriado para ser presidente. E ele é o presidente do país mais poderoso do mundo. Isso é algo completamente imprudente e irresponsável. Os políticos não perceberam, em 2016, que era o momento de pensar a longo prazo, pensar responsavelmente no bem estar do país. Líderes republicanos, do partido de Trump, sabiam que ele era um grande perigo às nossas instituições, que era um demagogo. Mas não o pararam. Eu espero que os políticos brasileiros reconheçam que esse é um momento de perigo, mas não é uma crise permanente. A tempestade vai passar, todas as tempestades passam. Mas é um momento crítico em que os políticos têm que se comportar de maneira mais cuidadosa e responsável ainda. A democracia brasileira é sólida mas este é um momento de vulnerabilidade. As duas forças políticas consideram uma a outra como ameaças à democracia. É um momento de perigo.

Everaldo Andrade : “Eu não vejo uma ascensão da direita”

Everaldo Andrade é professor do departamento de História Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Possui doutorado pela mesma instituição em História Econômica.  Já escreveu uma série de livros sobre revoluções latino americanas, como Revoluções Na América Latina Contemporânea: México, Bolívia e Cuba.

JC: Faz sentido falar em uma direita e uma esquerda no Brasil hoje?

Acho que faz sim, principalmente a poucos dias das eleições. Na verdade, por trás dos campos do petismo e do anti-petismo, existe esta ideia bem atual de esquerda e direita. A esquerda não só defendendo a igualdade, mas querendo transformar, mudar. E a direita querendo conservar, manter as coisas como estão. Entretanto, isso não é algo consolidado. Existe movimento, as ideias se movimentam, as forças políticas se movimentam. São dois blocos coesos. Há oscilações, mas existe, pelo menos, na situação brasileira, uma polarização, que aparece com essa trajetória esquerda-direita.

JC: Quão natural e quão nociva é essa polarização?

Ser positivo ou negativo depende da conjuntura do momento. As grandes rupturas e transformações históricas ocorreram sob tensão, sob acúmulo de contradições, sob problemas entre grupos de interesses diferentes. Isso acabou criando polarizações políticas. Na situação brasileira, de crise econômica, com mais de 13 milhões de desempregados, uma situação internacional difícil, é normal que haja um tensionamento de posições. Isso não quer dizer que seja positivo. O ideal seria que houvesse mais consenso. Mas como se constrói consenso? E também nunca existe o consenso total e permanente. Consenso é momentâneo no ambiente político. E há consenso em algumas questões; em outras, não. A questão do aborto, por exemplo, ou a reforma agrária. Depende do que se avalia e do momento.

JC: A democracia no Brasil é frágil?

Há uma tradição de falar sobre a fragilidade da democracia nesta região, tanto no Brasil quanto na América Latina como um todo. Mas o que é a democracia nos Estados Unidos? Os Estados Unidos são o grande exemplo de democracia. Mas o que é democracia lá? A maior parte da população nem vota, as minorias têm enorme dificuldade para votar, há um grande poder econômico na figura das grandes corporações que influenciam e dominam os meios de comunicação. Não existe horário eleitoral gratuito nos Estados Unidos: ou você tem dinheiro ou acabou. Esta é a democracia de fora. Então, a democracia do Brasil sempre foi estável também. Porque ampliar o direito de democracia é ampliar também os direitos sociais. Democracia não é só o direito de ir votar. Democracia é dar igualdade para que as pessoas tenham acesso a leitura, a uma casa, ao mínimo de dignidade para poder ser um cidadão. Se não se consegue garantir isso, a democracia está em questão.

JC: Você comentou a democracia nos Estados Unidos. A eleição de Trump, em 2016, despertou reflexões sobre a conjuntura política mundial. Há realmente uma ascensão do “populismo de direita” no mundo?

O que existe de concreto é uma crise econômica do capitalismo, que começou em 2008. Há uma redução do custo de trabalho na China, que impacta o setor dos grandes empresários nos Estados Unidos. É uma guerra econômica, que está na base da instabilidade política, explicando em parte a ascensão de Trump, com discurso nacionalista e protecionista. Um discurso com certa proximidade ao Bolsonaro. Eu não vejo isso como uma ascensão da direita. Na verdade, é uma consequência da crise econômica de 2008 no terreno político. As medidas tradicionais tomadas pelos liberais se esgotaram. E há uma necessidade da grande burguesia internacional, para sobreviver, de atacar direitos dos trabalhadores e aumentar a concorrência internacional com mercados de outras potências.. Ele não é algo isolado. Então, esse termo, o “populismo de direita”, dá um pouco essa conotação de sair da curva. E não é isso. Ele expressa uma insatisfação de um setor da população não organizado em sindicatos.

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Adriano Gianturco: “O risco é que a sociedade se divida”

Adriano Gianturco é professor de Ciência Política, de Economia Política Internacional e de História do Pensamento Econômico do IBMEC de Minas Gerais. Possui doutorado em História do Pensamento Político e Econômico, pela Universidade de Gênova, na Itália.

JC: Uma separação política e ideológica que divida as pessoas entre direita e esquerda ainda faz sentido?

Trata-se de rótulos vagos, que mudaram ao longo do tempo, assim como todas as ideologias também mudam ao longo do tempo. Os termos “direita” e “esquerda” nasceram durante a constituinte da Revolução Francesa, de forma casual e acidental, porque alguns sentaram à direita e outros à esquerda do semicírculo do parlamento. A direita era o partido do rei, a elite nobre que queria preservar o status quo e o regime monárquico. Ao contrário, a esquerda se opunha a esse sistema, queria incluir os outsiders e dar-lhes mais poder, mais voz e mais bem-estar. À medida que a esquerda chegou ao poder e que as massas de outsiders foram incluídas no processo político, esses grupos passaram a mudar de agenda e querer proteger agora os novos insiders, por meio de mais regulamentação, protecionismo, estatismo. Com o surgimento do socialismo marxista e com a revolução russa, as coisas mudaram. A direita política foi quase sempre estatista, e os casos  Ronald Reagan [ex-presidente dos Estados Unidos] e Margaret Thatcher [ex-primeira ministra do Reino Unido] são mais a exceção que a norma, a ponto de depois os respectivos partidos voltarem à linha normal. Hoje, a esquerda recorda e foca nesses dois casos para rotular a direita de “liberal”, termo que a direita mesmo recusa. O ponto é que a dicotomia esquerda-direita é binária.

JC: Quais os riscos de uma divisão ideológica desse tipo?

O risco é que a sociedade se divida e a elite política se fortaleça. É o velho divide et impera  [dividir para conquistar].

JC: A democracia no Brasil está em risco?

Em certa medida. Por um lado há quem na maior sinceridade defende explicitamente ditaduras militares como Cuba, China, Coreia e regimes como Venezuela, que faz duvidosas alianças com a ditadura angolana, com Hugo Chávez e Mahmoud Ahmadinejad [ex-presidente do Irã]. Do outro lado, também temos quem defende regimes de exceção, tortura e forte presença de militares em política. Mas, ao mesmo tempo, existe um centro democrático civilizado.

JC: O que ainda poderia caracterizar a direita e a esquerda no Brasil?

Pensam que o PSDB seja de direita, enquanto do ponto de vista da ciência política, da economia e da filosofia é objetivamente de centro-esquerda, social-democrata. Em termos científico o PSDB se aproxima das visões de Keynes, Amartya Sen, Rawls, (e não Hayek, Friedman ou Nozick). Se assemelha ao partido Democrata Americano, ao Labour inglês, ao socialista francês, ao Social-democrata alemão (e não aos partidos de centro direita ou direita destes países).