“Faz tempo que no Brasil não é feito jornalismo”

Cientista da comunicação analisa a relação turbulenta de Bolsonaro com a imprensa e questiona a qualidade do jornalismo brasileiro

 

A pesquisadora Roseli Figaro não está nada otimista. Jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero, a livre-docente da ECA-USP coordena o programa de pós-graduação em Ciências da Comunicação e o Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho.

Para ela, o discurso de ódio se estruturou nas eleições e podemos regredir a uma situação pior do que em 1964. “Agora a gente vai ver quem defende a democracia, mesmo”. Entre seus tormentos estão as falhas de uma atividade crucial, o jornalismo. Nossa performance seria “lastimável”.

Você vê o discurso do Bolsonaro como um catalisador do discurso de ódio, ajudando a incitar violências físicas durante as eleições?

Como cidadã, o que eu vejo é que o período eleitoral foi um período catalisador dos discursos de ódio. Esse discurso de ódio e de medo vem sendo trabalhado há algum tempo. Eu tenho visto isso, sobretudo a partir de 2013, em um momento em que as grandes manifestações populares passaram a ser dirigidas pelos movimentos conservadores e, principalmente, pela mídia institucional – o mainstream brasileiro. No período eleitoral, o discurso de ódio se estruturou de uma forma mais objetiva e se canalizou com uma motivação muito clara, que era a favor de determinado candidato. E é claro que, quando esses discursos tomam a cena, respaldados por autoridades institucionalizadas ou lideranças, autoriza-se de certa maneira pessoas da vida cotidiana  a agir de maneira bárbara, que é o que está acontecendo.

Qual deve ser o papel da imprensa diante do discurso de ódio?

Liberdade de expressão não significa liberdade de empresa, e também não é a liberdade de negócio. No liberalismo, liberdade é de negócio. O conceito de liberdade, a partir dos direitos humanos e da defesa da vida e da expressividade do ser humano, é absolutamente vinculada a todos os direitos de defesa da pessoa e da expressão cidadã. Se eu defendo matar pessoas que se identificam com uma outra identidade de gênero, será que eu tenho a liberdade de expressar essa opinião? Eu posso até expressá-la, mas eu tenho que pagar, porque essa opinião fere qualquer legislação civilizatória, que não defenda a barbárie. Agora, uma instituição de mídia não pode falar isso. Se ela abrir espaço para que o outro fale, ela tem que saber que poderá ser culpabilizada e tem que aceitar. Deve-se ter consciência disso.

A mídia normalizou o discurso do Bolsonaro?

A coisa é um pouco mais complicada. Porque o discurso não está centrado no Bolsonaro. O problema é o seguinte: faz tempo que no Brasil não é feito jornalismo. Quando compara-se a cobertura internacional das eleições brasileiras e suas repercussões e o que foi feito no país, o resultado é lastimável. Grande parte do que tivemos com a desinformação pelas fake news é porque não temos jornalismo. O espaço para fofocas e desinformação existe quando não há credibilidade no jornalismo que é produzido.

Qual o perigo de Bolsonaro deslegitimar a imprensa crítica, taxando-a como mentirosa, por exemplo?

Nós estamos correndo um sério risco, e não tenho nenhuma visão otimista dos próximos anos do país. Acho que estamos em um cenário muito complexo, e percebo que: ou entendemos que temos que defender a democracia – e defendê-la com o direito de todas as diferentes camadas da população a partir de uma grande frente democrática, junto com a mídia e todos os democratas sinceros – ou não iremos repetir 64, mas sim vamos para uma situação muito pior. Em 1964, tivemos um golpe; agora não, elegemos democraticamente um fascista. Então ele tem o direito de exercer o seu programa. É uma questão muito séria.

Como você acha que a mídia deve tratar o Bolsonaro a partir de agora?

Ele é o presidente do Brasil, uma instituição. Não é mais uma pessoa. Como uma instituição, ele deve ser tratado com respeito, porque ele foi eleito. E os atos que ele adotar tem que receber as críticas e os elogios pertinentes. A Constituição de 88 é a nossa bandeira, assim como a Carta de Direitos Humanos, não só brasileira, mas universal. O jornalismo tem que se pautar por essas duas grandes cartas, e fazer o seu trabalho bem feito.

As relações de trabalho do jornalista tendem a mudar a partir desse novo cenário?

A reestruturação produtiva, em um âmbito tão profundo como nós estamos vivendo, provoca medo. Por isso esses discursos conservadores caem bem, porque toda vez que muda-se profundamente as bases da produção da sociedade, sem que perceba-se um futuro mais estável, uma situação de instabilidade, medo e pavor é criada. No caso do jornalista, temos dados aterrorizantes de como a densificação, a qualidade e o pagamento foram diminuídos. Que tipo de jornalismo pode-se produzir assim? Como ter qualidade para confirmar, tempo para pesquisar? Quem paga esse tempo? Não é uma situação do profissional, mas sim do sistema. É complicado. Produz-se informação pelo clique, pelo o que está bombando no WhatsApp, no Facebook. Não é pela informação que seria mais útil para o cidadão.

Como o jornalismo pode se manter relevante e válido, mediante tantos ataques?

Fazendo o seu trabalho bem feito. Assim, os jornalistas vão ganhar a credibilidade da população. Se for ou não sofrer ataque, a vida do jornalista sempre foi essa. Todos nós vamos sofrer as consequências dos nossos atos do dia 28 de outubro. Eu, a USP, a Folha de São Paulo. Uns vão sofrer mais, outros menos. Agora a gente vai ver quem defende a democracia mesmo.