UFABC é a primeira a reservar vagas para pessoas trans em São Paulo

Em 2019, a universidade recebeu a primeira leva de estudantes beneficiados por essa cota

Por Jonas Santana e Laura Raffs

Marieu se beneficiou das cotas a pessoas trans desde o curso pré-vestibular da UFABC. Foto: João Paulo Falcão

A Fundação Universidade Federal do ABC (UFABC) é diferenciada das demais porque seu ano letivo é dividido em quadrimestres. Além desse diferencial, a UFABC, mesmo tendo apenas 13 anos, se tornou a única universidade pública do estado de São Paulo a aderir às cotas para pessoas trans por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Foi com essa reserva de vagas que o estudante trans não-binário Marieu Amaral, de 19 anos, ingressou no curso de Bacharelado em Ciências e Humanidades.

Marieu descobriu sua identidade de gênero aos 15 anos, sendo a única pessoa trans de sua escola. Ele lembra que em questão de orientação sexual a sua escola era bastante diversa, diferentemente de identidade de gênero, tanto que seus amigos não o entendiam. Assim, mesmo já tendo desenvolvido depressão por questões familiares, se assumir como trans fez com que sua saúde psicológica fosse ainda mais danificada. Diante disso, ele começou a faltar muito nas aulas, o que o deixou muito defasado, mas mesmo assim conseguiu se formar: “Não tinha vontade de ir à escola porque aquele era um espaço que me causava de alguma forma um desconforto”, comentou.

Para conseguir um emprego, ele tinha que omitir seu gênero e até interromper seu processo de transição. Por essa razão, Marieu opta por serviços informais e atualmente trabalha como diarista para conseguir alugar um quarto próximo ao campus de Santo André da UFABC. “Hoje eu trabalho fazendo limpeza e foi a melhor coisa da minha vida”, contou o estudante, que já limpou muitas repúblicas em torno da universidade.

Perguntado se já pensou em estudar na USP, Marieu afirmou que nunca quis pelo fato da Universidade não parecer ser inclusiva em questões sociais. “Eu espero muito que algum dia todas as universidades tenham cotas trans, principalmente na USP.”

Processo

Em 2016, uma funcionária trans terceirizada que trabalhava no campus de São Bernardo do Campo foi impedida de utilizar o banheiro porque causava “constrangimento”. A funcionária foi demitida e isso serviu de estopim para levantar a questão, segundo a também mulher trans Leona Wolf, coordenadora do coletivo LGBT Prisma – Dandara dos Santos.

Dessa forma, foi iniciado por parte do coletivo a luta pela regulamentação do banheiro e que se concluiu na Portaria nº 261 de 31 de Julho de 2017. Nela, a UFABC se comprometeu em garantir o acesso de pessoas trans a espaços segregados por gênero, fixar placas informativas, realizar uma campanha institucional e cursos de capacitação.

No entanto, de acordo com Leona, notou-se que a universidade estava menos violenta a pessoas trans, mas elas não conseguiam acessar a universidade. Assim, no final de 2017, foi aprovada a reserva de vagas para esse nicho na Escola Preparatória da UFABC, curso pré-vestibular gratuito da universidade. Mas ainda não era o bastante. Portanto, no começo de 2018, foi aprovado o projeto de reserva de vagas a pessoas trans junto à Comissão de Políticas Afirmativas, e em novembro a aprovação final pelo Conselho Universitário.

A universidade reservou 32 vagas, cerca de 1,5% do total. Destas, apenas 15 foram ocupadas. Ao jornal Folha de São Paulo, a pró-reitora adjunta de Assuntos Comunitários e Políticas Afirmativas da UFABC, Tatiana Lima Ferreira, afirmou que o percentual oferecido foi decidido tomando por base o tamanho da população trans dos Estados Unidos, com cerca de 1,8%, pelo fato do Brasil não ter estudos consolidados sobre o grupo em questão.  

Na lista pública de aprovados no vestibular, o nome dos estudantes trans é omitido de forma que possa preservá-los. Segundo o estudante Marieu, apenas o sistema sabe seu nome civil e em todas as listas constam seu nome social.

 

USP garante uso de nome social a trans, mas cota sequer é discutida

Na USP, as cotas para trans não são uma realidade, nem devem ser. Segundo a assessoria de imprensa da Universidade, não há previsão de adoção de cotas para ingresso de pessoas trans nos cursos de graduação. Porém, desde 2010, a USP permitiu que esses mesmos alunos, da graduação e da pós, usassem o nome social em documentos internos, como na carteirinha e listas de presença. Já os diplomas e histórico escolar completo – documentos externos – trazem o nome social e nome civil.

Apesar de medidas terem sido criadas para promover o respeito a identidade de gênero dos alunos no campus, o JC já noticiou em sua 498º edição, publicada em 14 de maio deste ano, que pessoas trans sofrem com preconceito e violência na USP. Depoimentos relataram desrespeito ao uso de pronomes adequados, olhares tortos, agressões físicas, psicológicas e éticas.

Opiniões divergem

Para mensurar hoje a aceitação de cotas para trans, o JC aplicou um questionário nos grupos de Facebook “Optativas USP”, “USP Debates” e “Transferência USP”. O assunto divide opiniões. Foram coletadas 100 respostas – 42 a favor, 52 contra, três ficaram em dúvida sobre a questão e outras três pessoas não opinaram.

Algumas pessoas “acham essencial” e consideram “necessário e urgente”. Segundo uma das respostas: “era pra acontecer faz tempo, visto que muitas das pessoas trans têm seus direitos cerceados e negados, muitas não têm acesso a educação formal e nem ao mercado de trabalho por conta do preconceito que existe na sociedade que vivemos”. Outra argumenta que é “totalmente válido, visto que pessoas trans são completamente marginalizadas, dificilmente conseguem empregos e tem a expectativa de vida de 35 anos”.

Por outro lado, existem alunos que discordam e consideram essas cotas “uma política de ação afirmativa infundada” e “uma medida extremamente infeliz”. Um dos discordantes diz que: “o objetivo das cotas é tentar suprir um déficit educacional crônico no país. Por isso, faz sentido pensar em cotas para alunos de escolas públicas e/ou pobres. Não faz sentido estender isso à comunidade trans, visto que ela atinge todas as classes sociais”. Outra pessoa afirma que “limitar uma nova cota somente a pessoas trans, exclui outros grupos que passam por preconceitos similares”.  

Luta estudantil

A Frente de Diversidade Sexual e Gênero da USP, criada em 2013 e formada por alunos da universidade, considera a implantação de cotas para trans uma importante medida de inclusão. Além disso, eles ressaltam a necessidade de considerar as vulnerabilidades a que os trans estão sujeitos e trabalhar na permanência dessas pessoas na universidade.

“Aliar o critério socioeconômico às cotas é algo importante. Assim como também é importante envolver toda a comunidade universitária (professores, servidores e alunos) em trabalhos de conscientização contra o preconceito para que situações de transfobia, ainda tão comuns para com essa população, inclusive na universidade, não aconteçam ou sejam devidamente tratadas”, afirma.

O plano para o segundo semestre é construir uma estratégia articulada para propor cotas para trans na USP. Durante o primeiro semestre deste ano, a Frente se preocupou em discutir o tema e alinhar a conduta.

 

Especial Edição 500

JC acompanhou a luta pela implantação de cotas para negros

Por Jonas Santana e Laura Raffs

Em 1996, na edição 168, o Jornal do Campus mostrou que a Reitoria estudava a implantação de cotas étnico-raciais em seu vestibular. A Fuvest não tinha opinião formada. Esse foi o início da cobertura relacionada ao posicionamento da USP sobre cotas.

JC 174 – Agosto/1996

Na edição 174, o JC noticiou protestos do Comitê Pró-Cotas para reivindicação de reserva de vagas a negros na USP. Enquanto o Comitê elaborava projeto que reservaria 10% das vagas da Fuvest para alunos negros, o Núcleo de Consciência Negra não concordava inteiramente com a iniciativa porque desconsideraria o histórico das lutas negras pela igualdade.

O JC também realizou uma pesquisa de opinião com estudantes da USP, publicada na edição 213, em 1999. Nela, as opiniões variaram desde pensar que as cotas para negros eram “uma forma de discriminação como qualquer outra”, até depoimento que dizia “sou a favor, pois sabemos que as pessoas dessa etnia são uma minoria dentro da universidade”.

Diversas reportagens retrataram a desigualdade racial na USP. O JC fez textos que apresentaram baixos números de representantes discentes e docentes negros, indicações de elitização dos cursos e entrevistas com autoridades opinando sobre a implantação das cotas.

Hoje, as cotas para Pretos, Pardos e Indígenas (PPI) são uma realidade juntamente às de estudantes oriundos de escolas públicas (EP). Em 2021, a USP destinará 50% de suas vagas a alunos de escola pública; destas, 37% serão para PPI. A mudança no perfil dos alunos na USP é perceptível, mas outras medidas de inclusão começaram a ser discutidas, como a implantação de cotas para pessoas trans.