Seguimos contando com a sorte

Relatos da comunidade USP e cenas encontradas no cotidiano contribuem para uma sensação de insegurança dentro do campus

Por Ana Gabriela Dompieri e Lígia de Castro

Montagem: Lígia de Castro

Na USP, nem todo risco é óbvio, e, às vezes, quando acidentalmente nos deparamos com algum deles, ficamos assustados. Existe um sentimento de insegurança muito presente por aqui, e que, na verdade, tem origem em fatos.

Logo depois de nos introduzirmos no ambiente universitário, temos a sensação de que ele existe há tanto tempo que existem planos de segurança bem estabelecidos, esquemas preventivos, instruções a se repassar; e que, enfim, existe alguém cuidando de tudo isso. O único problema é que não sabemos nada sobre tais associações preventivas e de acolhimento aos alunos, e na verdade nós deveríamos.

Será que o problema sou eu?, poderíamos nos perguntar. Mas vamos ver você, responda rápido: se o seu amigo acabou de quebrar a perna na cidade universitária, para quem deve ligar? Guarda Universitária, SAMU, SAS, HU? Se você respondeu Guarda, acertou. Segundo a assistente social do SAS, o problema é que só vamos pensar nisso na hora que algo der errado, e, às vezes, nessa hora não dá pra pensar.

Outros tipos de situação também estão sendo aceitos como imprevisíveis e incontroláveis mais do que deveriam. Nos tranquilizamos pelo mantra do “nada vai acontecer”, porque, se acontecesse, ficaríamos de mãos atadas. Mesmo quando alunos vão atrás das informações, elas parecem inatingíveis, ou básicas demais como “baixe o app de segurança no campus”. Isso nem de longe resolve questões como as que tentamos retratar em seguida, em várias cenas (cotidianas ou não) de riscos que, de uma forma ou de outra, foram apresentados a nós.

CRUSP

A confusão entre público e privado faz com que seja difícil se sentir em casa no Crusp. É o que conta Wagner Silva, estudante de Geografia e morador desde 2017. Ele pontua que a sensação de segurança na moradia estudantil provém mais do privilégio de se ter um amigo como companheiro de apartamento, como é seu caso, do que de métodos desenvolvidos e aplicados com esse objetivo. “Eu já vi pessoas forçando a maçaneta do meu apartamento, que por sorte estava trancado, e também já vi esse tipo de tentativa em outros apartamentos. O porteiro não tem controle dessas ocorrências”. 

Ele ouviu vezes em que pessoas conseguiram entrar para os apartamentos pelas janelas do corredor para roubar. E a porta do seu próprio apartamento é diferente: foi arrombada e teve que ser trocada. O acesso é livre aos andares a todas as horas, para qualquer um. Segundo Ronan Lima, aluno de História, casos recentes envolvem furtos de bicicletas, e Wagner acrescenta ataques físicos de uma moradora psicoatípica. Depois de uma repercussão no grupo dos vizinhos, Wagner não sabe como essa história acabou ou se acabou. 

Guilherme, estudante de Editoração e morador desde 2016, alerta para outras cenas de desamparo como vazamentos de gás, somados a fios desencapados, ou de água sobre a caixa de luz. Há risco de ficar preso por horas no elevador. “Também nos deparamos com poças de urina ou fezes humanas na cozinha”. Ele reforça a questão da recorrência dos surtos de moradores e, nesses casos, outro risco é o de, sendo alguém que precisaria de apoio psicológico, acabar preso como um “bandido comum”.

INCÊNDIOS

Entramos na sala. Aula longa: 4 horas. O assunto vaga pelo espaço, enquanto olho, distraída, para a janela. Na janela, vários recortes do lado de fora – uma grade dividindo-o em tantos pedaços. Enquanto isso, na minha cabeça, a lembrança de que um engenheiro havia avaliado o mesmo prédio em que piso, e havia dito que “não sabia como ainda não tinha pegado fogo”. Penso na possibilidade do fogo, e enfim percebo que não poderia sair pelos ferros da janela – e, do meu outro lado, só há uma porta para a vazão tumultuada de tantos alunos. Percebo que também não sei usar um extintor, e que, em mais de um ano e meio estudando aqui, ninguém se preocupou em me ensinar um plano de evacuação do Departamento de Jornalismo e Editoração.

Então me lembro que a situação é mais grave que isso. Porque não se trata apenas do CJE: no final de 2018, uma matéria do JC investigou e descobriu que apenas uma, dentre todas as unidades da USP, possui o alvará dos bombeiros. Esse ano, são duas: um dos prédios da POLI, e o IEE. E indo um pouco além, também não encontramos nenhum órgão que pudesse nos informar de um programa de prevenção para os calouros. Não o SAS, não as CIPAs, e não a Superintendência de Prevenção e Proteção Universitária (SPPU).

Inclusive, ao contatar essa Superintendência (dizendo que, como alunas, queríamos saber de seus mecanismos de prevenção), recebemos a resposta de que não precisávamos nos preocupar, porque a USP é segura. E ainda ouvimos que um evento sobre prevenção acontece, sim, de seis em seis meses, em prédios diferentes da universidade. Mas a pessoa não sabia quando seria o próximo, quando tinha acontecido o último, e como, meu deus, poderíamos conseguir essa instrução.

Nosso professor então nos alerta para o fato de que em 2001 havia acontecido um incêndio de grandes proporções no prédio central da ECA – que destruiu acervos importantes da Escola. Faço uma rápida pesquisa no google, e vejo que a coisa não é assim tão distante: em 2010, houve um princípio de incêndio que bombeiros tiveram de controlar, nesse mesmo prédio.

E estamos aqui, esperando pelo próximo.

OS MUSEUS

Rochas chamam atenção ao adentrar o Museu de Geociências da USP. Com o intuito de valorizar nosso patrimônio geológico, o espaço guarda vários fósseis e minerais (preciosos ou semipreciosos) em prateleiras de vidro, e à chave. Alguns dos mesmos, no entanto, ficam expostos em mesas compridas e abertas, em uma tentativa de uma interação maior com o visitante.

Eis que nosso professor de jornalismo conta que, em um belo dia, levou suas filhas para visitar o museu, e, ao longo do percurso, percebeu que a mais nova havia pegado uma pedra e estava levando-a embora. Fácil assim. Após o retorno da peça, pôde tornar essa história um símbolo da desproteção dos museus da USP – que, nesse caso, era vigiado apenas por um controlador de acesso e por algumas câmeras que não fizeram tanta diferença.

Em outra visita ao museu, vi a cena se repetir: uma excursão de muitas crianças entrava e brincava com as peças, e fiquei pensando se dessa vez não levariam mesmo alguma embora.

FURTOS

Investigando uma matéria da última edição do JC (“Procura-se um lugar para estudar na USP”), a repórter Larissa Silva acabou esbarrando em uma informação relevante: enquanto visitava o IME para entender o funcionamento de sua sala de estudos, a assistente administrativa do instituto contou que, no dia 22 de agosto, no bloco A, aconteceram furtos em 7 salas docentes. Não há câmeras de seguranças instaladas pelo lugar e a investigação sobre o caso ainda está se desenrolando. Mas é certo que levaram máquinas fotográficas e pertences de doutorandos (e, estranhamente, estes eram alguns dos mais novos e sofisticados do Instituto).

No mesmo mês, um outro caso (HQ da página 6): o roubo de 29 notebooks do curso de Biblioteconomia. Um evento maior acontecia no mesmo prédio, o que talvez tenha facilitado o ir e vir do(s) indivíduo(s). Ainda assim, fica a pergunta: como assim levaram 29 notebooks?

GUARDA UNIVERSITÁRIA

A Guarda Universitária é uma parte importante do sistema de proteção da USP. Vinculada à Superintendência de Prevenção e Proteção Universitária, tem o objetivo de acompanhar os alunos e funcionários para que os protejam de ameaças. O problema, aqui, é mais delicado e mais absurdo, porque essas pessoas, que estão à serviço da comunidade, também estão desprotegidas. A falta de coletes à prova de balas e o fato de que eles dão flagrante apontando uma lanterna para a cara do infrator são chocantes o suficiente para que algo seja feito a respeito. Isso sem contar o polêmico fato de não usarem armas. E a questão se estende também aos “controladores de acesso” de cada departamento, que na verdade não têm qualquer equipamento de proteção nem preparação para um caso mais grave, e estão ali na nossa frente esperando pelo pior.

AMEAÇAS

Podemos lembrar de casos que simbolizam o “graças a Deus não aconteceu nada pior” na USP. Apenas pouco depois do massacre de Suzano, duas ameaças graves ocorreram na por aqui. Uma delas, numa sexta-feira, quando um homem entrou no Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE/ECA) sob o pretexto de usar o banheiro, mas foi para uma sala de aula. Ele a invade e, aos gritos, usa o professor como interlocutor. Um aluno relatou: “Ele chegou na sala e gritou: ‘professores, vim falar sobre a menina que vocês dizem que eu estuprei´. Aí o professor  falou: “amigo, volta daqui uns 10 minutos, estamos em aula”. Ele: ‘agora eu sou amigo, é? Quando eu voltar vocês vão ver’.”

“Desesperador” e “aterrorizante” foram palavras usadas pelos alunos para descrever a situação. O professor, ao contrário do que parecia por sua resposta controlada, sabia tão pouco quanto eles.

Na segunda-feira, primeiro dia letivo após as ameaças, uma secretária quis tranquilizar uma aluna que tentou contato, dizendo que os professores do Departamento estariam a par do ocorrido e que uma reunião estava marcada para o dia seguinte. Na verdade, eles não possuíam a versão dos alunos e nem a do segurança, o que os deixava atrás de onde queriam aparentar. Os alunos tentavam fingir, nos próximos dias, que nada iria acontecer. Nenhuma instrução ou sequer informação foi oficialmente repassada.

Um dia letivo após o ocorrido, tudo que a segurança sabia era “que é um homem de mais ou menos 1,70 m”. Não sabia que ele havia prometido voltar. Dias depois, um vídeo de um homem gritando numa sala ao lado apavorou os alunos; e nesse momento estava desocupada a cadeira dos seguranças, bem como estaria novamente por um período considerável dali a uma hora. Caso o homem retornasse, a fuga seria difícil:: porta única e janelas gradeadas. Passei semanas escolhendo lugares da sala que eu pensava ter mais chance de escapar de um possível ataque.

NÃO-PREVENÇÃO

Imersos em tantas situações de insegurança dos campi, seria de se esperar que os alunos tivessem ao menos um comitê/órgão que os preparasse para tais perigos. Ou que oficialmente os acolhesse quando a ameaça não pôde ser evitada, e quando não soubessem como lidar com ela. O JC tentou contato com algumas dessas possíveis associações, no entanto, e simplesmente foi sendo lançado para outros lugares.

A CIPA, Comissão Interna de Prevenção de Acidentes, é uma organização de presença obrigatória a cada unidade de trabalho da USP (norma da CLT). Tais Comissões são responsáveis, entre outras tarefas, por traçar os Mapas de Risco de cada departamento, e pela realização anual de uma Semana Interna de Prevenção de Acidentes do Trabalho (SIPAT), de caráter instrutivo. Em contato com a CIPA da ECA, foi-nos dito que as comissões são mesmo voltadas para os funcionários, e que eles não tinham conhecimento de uma outra proposta aberta aos alunos.

A SIPAT, entretanto, de fato tem livre acesso a todos os interessados. Esse ano, aconteceu nesse mês, e foi organizada por todas as CIPAs da USP em conjunto. Encontramos um “vídeo de encerramento” de 10 minutos na página oficial do evento, no Facebook, que na verdade nos deixou em choque. Entre músicas dançantes e palestras sobre saúde bucal e ciência divertida, há no final uma montagem de fotos de todas as pessoas que dormiram durante o evento – sem falar nas legendas “zueiras” comparando um funcionário a um “minion” e outra pessoa ao Whindersson Nunes. 

Como já relatado no intertítulo “incêndios”, a Superintendência de Prevenção e Proteção Universitária também não nos ofereceu muita ajuda além de indicar que baixássemos o aplicativo de segurança da USP. A SAS também disse que não cuidava desse tipo de assunto.

O relato de Wagner e Luís, moradores do CRUSP, também nos acendeu para o fato de que a própria falta de aviso sobre possíveis acompanhamentos psicológicos, ali dentro da USP, esteja deixando esses moradores à deriva, e doentes.