Infância roubada

Por Pedro Smith

Crédito: Divulgação

“Vocês roubaram minha infância”. Uma das frases mais ouvidas, comentadas e compartilhadas das últimas semanas foi proferida por Greta Thunberg, jovem de 16 anos que não resistiu assistir às agressões ao planeta e foi até a Cúpula do Clima da ONU, em Nova Iorque, esbravejar suas indignações, enquanto, segundo a própria, deveria estar na escola. 

Do outro pólo do globo, em São Paulo, quatro anos atrás, outra jovem, Manuela, estava na escola, mas não estudando. Ela protestava pela melhoria do ensino, no que ficou conhecida com a “Greve dos colégios públicos de 2015”.

Hoje, Manuela roda o país – e o mundo – como uma das protagonistas do aclamado documentário “Espero tua (re)volta”, da documentarista Eliza Capai.

Apesar da distância de tempo e espaço, Manuela compartilha da indignação de Greta: ambas não deveriam ter que reivindicar tais pautas tão jovens. “É cruel botar esse peso nas crianças”, disse em apresentação do documentário organizada por professores da ECA-USP no início de outubro.

Além da generosidade, força e outras qualidades, o documentário projeta este olhar: colocar os jovens como futuro da nação é tão esperançoso, quanto cruel. A utopia de ver o mundo guiado pela pureza torna-se um pesadelo distópico quando estudantes são recebidos a cassetetes e gás lacrimogênios em manifestações.

São infâncias perdidas em lutas desiguais, que não são provocadas por eles. Manuela conta que desenvolveu crise de pânico por conta dos embates com a Polícia Militar durante as greves e sabe se lá como a jovem Greta irá reagir aos ferozes ataques que vem recebendo de todos os cantos do planeta – muitos deles de adultos, desqualificando-a por sua pouca idade. 

Evidentemente, uma população jovem, politizada e crítica é fundamental para comunidades democráticas, mas a grande questão é: até que ponto estar no fronte de batalha não é retrato de uma sociedade preguiçosa, alienada e pouco ativa, que empurra as mazelas do agora para o amanhã?

Generosidade autoral

Sucesso de crítica, nem tanto de bilheteria, o documentário “Espero tua (re)volta” é um documento histórico. Mais do que o fervor das cenas, os angustiantes cortes e a temperatura da narrativa, o filme projeta-se como mais um daqueles clássicos que os professores de História do colégio indicam a seus alunos. 

Sua materialidade historiográfica vai além do riquíssimo acervo de imagens recolhidos pela editora, Eliza Capai, e alcança sua generosidade na construção da narrativa. Eliza entende que a história que conta não é dela, não lhe cabe por sua marca, manchar as linhas de outros, qualquer intromissão autoral empobreceria a dramática realidade em que se incluem os personagens.

Ao emancipar os três protagonistas a narradores, donos de suas falas e atores de sua voz, a obra ganha complexidade subjetiva que escapa às imagens e os registros do momento. Os dilemas, conflitos internos e inquietações – que vão muito além das pautas pela qual reivindicam – dos jovens personagens humanizam aqueles que são vistos como “heróis” – ou “vilões”. 

Como mediadora de discurso conflitantes, Eliza escorrega sobre os espaços, põe se invisível em meio multidão e se dilui entre os quadros. AÍ mora sua autoria, sua marca: fazer-se não ver. Tarefa árdua, em um meio que constantemente confunde-se autoria com exibicionismo. 

Traços de uma – brilhante – autora invisível.