O Show tem que continuar?

Fraternidade masculina existente desde 1944 se baseia no segredo e na hierarquia

Por Laura Scofield

Descendo a Avenida Brigadeiro Luis Antônio em direção ao centro de São Paulo, encontra-se o Teatro Bibi Ferreira, palco das edições 76ª (2018) e 77ª (2019) do Show Medicina. No dia 3 de outubro, a apresentação estava marcada para começar, pontualmente, às 20h. Já era 20h30 e nada. Bebendo na entrada do teatro, alguns jovens fantasiados ou vestidos de preto conversavam e cantavam hinos típicos da instituição. Por volta das 21h, a apresentação começou. 

Entrei. No palco, uma cena relativamente inédita: os estrelos – nome dado aos atores – estavam vestidos de personagens da Turma da Mônica. Era o primeiro dos muitos quadros de um show que só acabaria depois da meia-noite. O roteiro e técnica não eram admiráveis. A cena parecia bagunçada, quase improvisada. A plateia, entretanto, parecia se divertir.

O Show Medicina é uma fraternidade pautada por normas rígidas de segredo, poder e hierarquia. Seu lema é Ridendo castigat mores”, que significa “com o riso castiga-se a moral.” O grupo intenciona fazer críticas ao cotidiano da faculdade com pequenas esquetes. Sua existência, mesmo escancarada, procura ser sigilosa. Não se deve falar sobre. Não se pode falar sobre. E os motivos vão de medo de suicídio social até a noção de que falar é dar palco aos integrantes – que, anualmente, contratam seu palco próprio. 

Os autoproclamados artistas criaram o hábito de responder às constantes denúncias envolvendo seu nome com a tentativa de taxar tudo que os cita como publicidade. Esta matéria, por exemplo, seria um anúncio gratuito. Mas por que tamanha defensiva?

O desenho na parede do porão faz referência à 77ª edição do Show. A tinta de tom mais escuro por baixo que havia, antes, outra manifestação da fraternidade. Crédito: Laura Scofield

A história 

Nas paredes do subsolo do prédio da Faculdade de Medicina da USP, escrito e reescrito em tinta ou spray, está uma história de conflito e disputa. Entre denúncias a respeito do sucateamento do HU, posicionamentos políticos e desabafos juvenis, estão as pinturas enigmáticas da fraternidade. Na manhã do dia 30 de setembro, elas foram o foco de uma grande discussão no Comunicação CAOC, grupo de Facebook que agrega alunos do 1º ao 6º ano de Medicina. 

Um aluno alegava estar sendo censurado. “OH SEUS FILHOS DAS PUTAS, meus desenhos eu assino. Quem foi que fez essa merda? O PORÃO É DE LIVRE INTERVENÇÃO DOS ALUNOS CARALHO.” Ele estava falando sobre o fato de que, naquele dia, alguns desenhos relacionados ao Show acordaram pintados de tinta amarela. Nos comentários, existiu até quem comparasse tal acontecimento à censura da arte durante a sombria Ditadura Militar. 

Para entrar para o Show, os interessados, somente homens, passam por um vestibular, composto por uma prova que tematiza cultura, teatro e arte. O edital para a seleção dos calouros de 2019 incluiu obras como 1984, de George Orwell, a 6ª temporada de RuPaul’s Drag Race e Introdução às Grandes Teorias do Teatro, de Jean Jacques Roubine. A grande questão, e que rendeu ao Show a proibição da realização de suas atividades na Fmusp, é o que acontecia no vestibular depois da prova. 

Eram trotes violentos e gravíssimos, regados sempre a muito álcool e com demarcações claras de poder. Era comum que, de tão bêbados, integrantes quebrassem membros, como costelas, dentes e cóccix. Na 77ª edição do Show, piadas sobre o tal dente quebrado foram constantes. Existiram também casos de simulação de estupro e diversos outros tipos de humilhação. A prova do vestibular, afinal, não servia para nada, era apenas uma etapa que antecedia a seleção – o critério era simplesmente resistir, se calar e se submeter. 

Outro ponto que torna o Show, no mínimo, questionável, é sua relação com as mulheres. O grupo é formado apenas por homens, mas as meninas interessadas podiam fazer parte de outra entidade: a Costura. A função: costurar as fantasias. Em 2018, a Costura divulgou, também no Comunicação CAOC, uma nota oficial anunciando sua saída do SM. Os motivos não foram bem especificados, mas fontes afirmam que elas buscaram participar ativamente do Show e foram negadas.

Em 2017, na 75ª edição do Show, o quadro misto – homens e mulheres atuando juntos – foi uma realidade. Porém, a participação feminina se reduziu apenas a quadros específicos, deixando de fora aqueles de maior credibilidade, como o coral e o ballet. Na última edição, mulheres participaram de dois quadros, o primeiro – vestidas de Mônica e Magali – e o último – interpretando as personagens de Friends. Porém, o elenco era majoritariamente masculino: apenas três meninas participaram.

A partir de 2013, com o fortalecimento do posicionamento de minorias dentro da faculdade e a criação de núcleos e coletivos, como o NEGSS (Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade) e o Coletivo Feminista Geni, o silêncio começou a se quebrar. Denúncias de estupro e dos trotes violentos fizeram com que fosse criada uma CPI na Alesp, a chamada CPI dos Trotes. 

Adriano Diogo, na época deputado pelo PT, foi o presidente, e conta que sofreu muitas ameaças por estar levando adiante a investigação. “Teve médico que se recusou a me atender.” A CPI durou três meses e gerou como resultado prático a criação, por parte da Fmusp, de uma ouvidoria e outros núcleos de apoio ao estudante, além da recomendação do Ministério Público que proibia o Show de ensaiar e se divulgar em espaços da universidade. 

Isto não é publicidade para o Show Medicina

Depois da CPI, as forças dentro da FMUSP mudaram. Mas o Show continua. Está marcado e materializado na Universidade – seja no porão, com as pinturas; na entrada do Teatrão, com uma escultura em homenagem; ou no 5º andar, com uma placa exibindo o nome dos ex-diretores. Tudo isso é publicidade para o Show Medicina, o que não significa que qualquer coisa que leve o nome do grupo também o seja. Não é. 

Hoje, o grupo se aproveita do medo de se falar sobre. Mas há quem tenha coragem de se manifestar. Felipe Scalisa, fundador do NEGSS, pontua que “o método de divulgação deles é a polêmica. É consciente.” Com um discurso irônico, comentam em posts do Facebook e fazem chacota de discussões sérias. 

Na prática, entrevistas quase só são concedidas em off e existiu até uma declaração oficial de entidade estudantil contra a publicação desta reportagem. Uma matéria não é bem vista também pelo Show, que se negou a falar com o argumento de que seu posicionamento poderia ser tirado de contexto. Falta diálogo.  

Felipe, entretanto, fala. E é incisivo ao dizer que acredita na necessidade de se documentar a história da realidade. Quando questionado sobre o poder do grupo e a razão de tamanho sigilo – dentro e fora da entidade – ele responde: “é parte do delírio, da ficção.”