Músicos mantêm Orquestra de Câmara da USP em funcionamento à distância

 

por José Higídio

Foto: Reprodução/YouTube

 

O maestro faz o sinal de corte. Encerra-se a peça. Os músicos, suados pelo esforço de tantos movimentos, retomam o fôlego em cima do palco, enquanto a plateia aplaude veementemente. A cena é de recompensa para os instrumentistas que tanto ensaiaram para esse momento decisivo.

Mas nada disso acontece durante a pandemia de Covid-19. A necessidade de evitar aglomerações não permite que a Orquestra de Câmara da ECA-USP (Ocam) faça concertos ou até mesmo ensaios neste ano. O momento traz aos músicos o desafio de manter as atividades à distância.

Desde março, todo o trabalho do grupo é feito de maneira virtual. A dinâmica de prática em conjunto perdeu espaço: “Não tem como fazer um ensaio de orquestra virtual”, conta George Ferreira, percussionista da Ocam.

Ele explica que o maestro Gil Jardim passou a montar arranjos pensados para o momento de isolamento social, “tanto na questão temática quanto na questão técnica”. Os músicos recebem as partituras e um áudio guia. A partir disso, estudam individualmente e gravam vídeos tocando suas respectivas partes.

Nesse período, o mais próximo que a orquestra chega de um ensaio são as reuniões. Nelas, todos escutam as gravações enquanto acompanham a grade de partituras compartilhada na tela.

Trecho do clipe de Espero Que Nomes Consigam Tocar!. Foto: Reprodução/YouTube

 

Depois de finalizados, os vídeos e áudios são enviados para a equipe de produção da Ocam. Assim, são montados os produtos finais — trabalhos audiovisuais que substituem os concertos. Segundo George, a adaptação do grupo não se restringe à forma musical: “Tem toda uma questão de diálogos entre as artes, fotografia, enredo, movimentação”.

A programação é de que até o fim do ano a Ocam lance quatro desses trabalhos audiovisuais. Até o momento, já foram lançados dois. O primeiro foi Temos Por Quem Lutar!, um arranjo de O Trenzinho do Caipira, de Heitor Villa-Lobos, com citações de músicas conhecidas da MPB.

O segundo foi Espero Que Nomes Consigam Tocar!, uma homenagem às vítimas da Covid-19. A produção teve a participação do cantor e compositor Chico César, além de Bráulio Bessa, Neymar Dias e o Coro de Câmara Comunicantus, também ligado à ECA.

Música em casa

“Se perguntar para todos os músicos, acredito que a maioria diria que prefere tocar com todos juntos e presencialmente”. A frase de Patrick Sugahara, oboísta da Ocam, demonstra a dificuldade de adaptação aos novos moldes da orquestra à distância. George vai de encontro: “Por mais que seja possível fazer sozinho, a gente descobre que sabe fazer música quando fazemos junto com outras pessoas”.

Patrick exemplifica: “Quando tocamos juntos, percebemos as articulações, fraseados, quem está tocando aquela parte, mas uma terça acima. É mais simples de perceber essas coisas, e naturalmente vamos criando uma música juntos”.

Patrick Sugahara tocando oboé em casa. Foto: Reprodução/Instagram

A tentativa de organização de todo esse processo também é mais trabalhosa. “Temos uma reunião bem intensa, em que o maestro vai passando tudo, às vezes compasso por compasso, para deixar claras as ideias e todos conseguirem chegar o mais perto possível. Mas mesmo assim é diferente, não sai totalmente igual”, aponta Patrick.

Para George Ferreira, o procedimento remoto aumenta o perfeccionismo: “Quando a gente está tocando ao vivo e se apresentando, por mais que a gente estude e ensaie muito antes, acaba errando, e não vai voltar e consertar. Quando a gente tem que enviar uma gravação, a gente se preocupa em enviar com o menor número de erros possível”. O percussionista conta que a gravação pode durar horas para atingir essa meta, entre erros, recomeços e acertos aos poucos. Ao fim, ele percebe que gravou “uns 40 vídeos”.

Patrick acrescenta como ponto negativo a interferência da internet. Às vezes o oboísta toca bem, mas percebe depois, ao assistir, que a gravação falhou, ou o som sumiu e o resultado não ficou legal. Ele também conta que as gravações não captam bem as dinâmicas musicais (variações de intensidade sonora): “No vídeo fica meio que tudo igual”.

A falta de um espaço adequado para tocar transforma o próprio som em uma preocupação: “Seja quando a gente está incomodando as pessoas ou quando as pessoas estão incomodando a gente”, esclarece George.

“Tem a questão de carro da pamonha, vizinho com música alta, seja lá qual for, moto e ônibus na rua”, elementos que, segundo o percussionista, podem atrapalhar o desenvolvimento durante o estudo. Mas há também o caminho inverso do som.

“Alguns instrumentos têm uma potência maior, que deve dificultar a convivência da vizinhança”, diz Patrick. Nem o oboísta nem o percussionista vêm enfrentando dificuldades nesse aspecto, mas ambos apontam que há um desafio, para todos os músicos, de não incomodar quem está nas proximidades.

Existe também o obstáculo da infraestrutura, que afeta principalmente George. O repertório de uma orquestra pode exigir que o percussionista toque diversos instrumentos diferentes, muitas vezes na mesma peça. E nem sempre é possível ter em casa tudo que é necessário. “Diferente de uma pessoa que toca um mesmo instrumento sempre, o percussionista sai prejudicado, sim”, diz George.

Mesmo com um set caseiro que lhe permite estudar o essencial, o percussionista precisou fazer adaptações. Sem alguns instrumentos, certas técnicas de baqueta precisam ser praticadas em almofadas, travesseiros ou colchões. Peças de marimba — um instrumento de grandes proporções — ou de múltipla percussão também precisaram ser deixadas de lado. Com a recente liberação das atividades de laboratório na USP, George vem se deslocando até o campus uma vez por semana, sem contato com ninguém, para repor minimamente esses estudos: “Tem instrumentos que só tem lá e é impossível um estudante ter em casa”.

Instrumentos de percussão disponíveis na casa de George Ferreira. Foto: Arquivo pessoal

Toda essa lista de problemas pode abalar intensamente a experiência dos instrumentistas de orquestra: “Aula de instrumento on-line é uma coisa difícil de achar um ponto positivo”, afirma Patrick. Para ele, “fazer música nessas circunstâncias acaba não sendo muito prazeroso”.

Superando as adversidades

George encara o momento difícil de uma forma um pouco mais positiva. Para ele, a Ocam se descobre enquanto grupo frente aos desafios: “Nós somos orquestra tocando juntos no palco e também estamos sendo uma orquestra mesmo que cada um em sua casa”.

Ele também avalia que o formato atual das atividades é a opção mais viável para o momento; uma escolha principalmente prudente e responsável: “A gente não está preparado para se encontrar como se tudo estivesse bem, como se ninguém estivesse em risco. Então penso que é o melhor que estamos conseguindo fazer, também penso que atende às demandas e desafios do momento”.

George Ferreira em trecho do clipe de Temos Por Quem Lutar! Foto: Reprodução/YouTube

Se o isolamento quebra as expectativas de um trabalho em grupo, George aproveita o período no conforto de casa para estudar muito e se desenvolver individualmente: “Estou me preocupando em sair da quarentena melhor do que eu entrei”.

Eventuais pequenos pontos positivos em meio à situação caótica não ofuscam a desproporção dos pontos negativos. Mas de certa forma ajudam a orquestra e seus músicos a enfrentarem as adversidades do momento. Mesmo sem o entrosamento dos ensaios ou a magia dos concertos, o grupo se mantém ativo e ainda consegue espalhar a arte e a mensagem de que ela sobrevive à sua maneira.