Nova Constituição chilena aponta o fim de uma longa era 

Após protestos, chilenos votam a favor da formação de uma assembleia constituinte

 

por Renata Souza

Praça da Dignidade, Chile, 16 de outubro de 2020. Foto: Eric Allende/Migrar Photo

 

Com 78% dos votos, os chilenos aprovaram, no dia 25 de outubro, a criação de uma nova Constituição. O plebiscito foi acordado em novembro de 2019, após cerca de um mês de tensão nas ruas do país. Os protestos explodiram como reação ao aumento do preço da passagem de ônibus, mas representam a antiga insatisfação do Chile com a sobrevivência da ditadura de Augusto Pinochet em meio à democracia. E, agora, a nação se prepara para enterrar o maior representante vivo do governo do ditador: o texto constitucional de 1980.

Para escrever a nova Constituição, serão eleitos 155 parlamentares constituintes em 11 de abril de 2021. Será obrigatória a paridade de gênero nesse número total – mais uma das conquistas do movimento popular chileno. E, se tudo correr como o planejado, está previsto que a nova Constituição esteja pronta em 2022. 

Segundo a historiadora Joana Salem, especialista em América Latina, o futuro do país ainda é incerto. “Nada está garantido. Ainda têm muitos obstáculos e armadilhas para serem superados”, afirma. Por outro lado, ela é otimista quanto à conquista do plebiscito e o engajamento da sociedade chilena: “se não houvesse o protesto popular, não haveria o plebiscito. E esse plebiscito é sim, uma conquista das lutas populares do ano passado”. 

Os protestos começaram em outubro de 2019 e levaram o país a decretar Estado de Emergência. Os chilenos também viram as Forças Armadas voltarem às ruas pela primeira vez desde a ditadura militar. Tudo isso em razão da dimensão das manifestações – que chegaram a contar mais de um milhão de pessoas em um único dia – e do caráter combativo que foram tomando.

Santiago, Chile, 25 de outubro de 2019. Foto: Jorge Vargas/Migrar Photo

 

No Brasil, logo após o plebiscito do Chile, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP), propôs que também tivéssemos por aqui uma nova Assembleia Nacional Constituinte. “Se nós fossemos capazes de cumprir a nossa Constituição, sem dúvida, a gente viveria numa sociedade melhor. Penso que a proposta não tem lastro histórico nesse sentido, porque a sociedade brasileira hoje é pior do que a sua própria Constituição imaginou”, ressalta Joana. Já a história do nosso vizinho latino-americano é absolutamente oposta. 

A ditadura de Augusto Pinochet 

Em setembro de 1973, o chefe das Forças Armadas, general Augusto Pinochet, comandou o golpe contra o então presidente do Chile, Salvador Allende. O país andino vivia um momento de fortalecimento das políticas sociais, como reformas agrária e nos setores da educação. Por outro lado, as dívidas do país cresciam, e a extrema direita se preocupava com a ascensão da esquerda. 

O período que Pinochet passou no poder, até 1990, foi de autoritarismo, perseguição política, supressão de direitos sociais e neoliberalismo exacerbado. É nesse contexto que, em 1980, é aprovada a Constituição que vigora no Chile até os dias de hoje. De lá para cá, o texto sofreu alterações, mas ainda é a principal reivindicação dos setores sociais. 

Joana Salem explica que “é um modelo de sociedade criado na ditadura, concebido na ditadura e que se perpetuou quase que integralmente na democracia. Isso aconteceu porque a transição da ditadura para a democracia no Chile foi uma transição pactuada”.  A historiadora se refere ao fato de o fim da ditadura ter sido um acordo político, não uma revolução. Tanto que o ditador Augusto Pinochet recebeu o cargo de senador vitalício e muitos dos parlamentares continuaram atuando na democracia até a aposentadoria, relembra a especialista. 

A ditadura chega ao fim em 1990, quando é eleito Patrício Aylwin, ex-senador do regime Pinochet. No mesmo ano, Patrício cria uma comissão para apurar as violações aos direitos humanos: o relatório final apontou, a partir de denúncias, 2.279 pessoas vítimas de violência política durante o período ditatorial. Anos mais tarde, a Comissão atualizou os números e elevou o número de vítimas para mais de 40 mil, sendo que grupos de sobreviventes acreditam que esse total supere os 100 mil.

Arte: Renata Souza

 

O Chile atual 

Mesmo com o fim da ditadura militar, as estruturas do regime permaneceram vivas no Chile por muito tempo. Dessa herança, o neoliberalismo é, provavelmente, o grande destaque. Joana Salem aponta que a sociedade chilena ainda é extremamente privatizada. Isso inclui os setores da educação, saúde, previdência, indústria e até mesmo os direitos básicos, como acesso à água.  

 “A mobilização de 2019 é resultado de um conjunto de mobilizações que já vinha ocorrendo há pelo menos 15 anos. Estudantes, aposentados, feministas, mulheres: uma série de setores que já reivindicavam uma nova Constituição para o país há muito tempo. E, claro, dos povos mapuche, sempre mobilizados, desde os anos 90, em luta para proteger seus direitos territoriais e culturais”, esclarece Joana.

Apesar da conquista do plebiscito, o país ainda terá muitos desafios até a aprovação de um novo texto constitucional. Isso porque algumas das normas impostas no processo dificultam determinadas demandas. Uma delas é a maioria dos dois terços. Todos os tópicos deverão ser aprovados por dois terços dos votos e não apenas por uma maioria simples de 50% mais um.

Os parlamentares constituintes também estão proibidos de aprovar regulamentos que desconsideram tratados internacionais de livre-comércio, dos quais o Chile é signatário. A historiadora aponta que “o Chile é um país extremamente liberal, caracterizado pela exportação de cobre, madeira, frutas e pesca, principalmente. Essa inserção do Chile no mercado mundial, com seu aspecto primário exportador, é regulamentada por uma série de tratados de livre-comércio que desregulamenta qualquer tipo de intervenção do estado para incentivar determinados setores da economia”.

Tudo aponta para o fato de que o caminho do Chile ainda será árduo até romper de vez com as bases construídas por Augusto Pinochet. No entanto, Joana é otimista quanto ao processo até aqui: “a sociedade chilena não será a mesma depois de 2019, porque a experiência da luta popular e essa irrupção de indignação marcou a vida das pessoas”. 

As imagens deste texto foram gentilmente cedidas por Eric Allende e Jorge Vargas