Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: muito além da cidade, a diversidade

Destaques, homenagens, novo formato e entrevista exclusiva com o diretor de Cidade Pássaro, Matias Mariani; você confere no Jornal do Campus o que rolou de melhor no festival

 

por Danilo Moliterno

Em sua 44ª edição,  Mostra de São Paulo foi pela primeira vez realizada on-line. Foto: Reprodução

 

Entre 22 de outubro e 4 de novembro ocorreu a tradicional Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Os filmes das 44ª edição do evento, devido às complicações da pandemia, foram exibidos on-line, por meio dos aplicativos Mostra Play, Sesc Digital e Spcine Play, e em dois cinemas ao ar livre, o Belas Artes Drive-In e o CineSesc Drive-in.

O evento, definido como “o mais importante de cinema do Brasil” por Thiago Afonso de Andre, professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão (CTR) da USP,  exibiu neste ano 198 longas de 71 países diferentes. 

Entre eles, obras já reconhecidas internacionalmente, como Nova Ordem — longa que abriu a mostra —, vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza; Cidade Pássaro, antes exibido no Festival de Berlim; Beans, ganhador do Prêmio Estrelas em Ascensão do Festival de Toronto; e muitos outros.

Nenhum desses, no entanto, agradou tanto os jurados da mostra quanto o nigeriano Esse É o Meu Desejo, que levou o Prêmio do Júri de Melhor Ficção, e 17 Quadras, produzido nos Estados Unidos, vencedor do Prêmio Júri de Melhor Documentário. Chico Rei Entre Nós, da brasileira Joyce Prado, apesar de não ter conquistado esse último, ganhou menção honrosa dos avaliadores.

Se por um lado Joyce passou raspando na premiação do júri, por outro viu seu longa vencer com méritos o Prêmio Público de Melhor Documentário Brasileiro. Já o Prêmio de Melhor Filme de Ficção Brasileiro ficou para Valentina, de Cássio Pereira dos Santos. Thiessa Woinbackk, atriz do longa, por sinal, foi outra a receber menção honrosa no Prêmio Júri.

As premiações da 44ª Mostra ocorreram no Parque Ibirapuera. Foto: Reprodução

 

Em outras premiações importantes, o estadunidense Bem Vindo à Chechênia ganhou o Prêmio Público de Melhor Documentário Internacional, enquanto o de Melhor Ficção Internacional ficou para o diverso Não Há Mal Algum — que contou com profissionais de Irã, Alemanha e República Tcheca. 

Nenhum desses, porém, foi o maior destaque da Mostra de São Paulo em 2020. Para Afonso de André, esse mérito fica para a diversidade apresentada, uma marca registrada do festival:

“Uma das melhores coisas que a mostra tem é você poder se deparar, acabar quase que tropeçando em um filme inusitado, de um país cuja cinematografia você não acompanha. Esses filmes são os que podem trazer a experiência mais interessante e fazem da mostra o evento que ela é”.

Além da pluralidade naturalmente acarretada pelo fato de que haviam filmes de 71 países diferentes, a curadoria da mostra, encabeçada por Renata de Almeida, foi cuidadosa ao pensar a representatividade em muitos outros aspectos. Dentre os filmes exibidos, por exemplo, 52 foram dirigidos por mulheres. 

O protagonismo apreendido pelas histórias negras foi outro destaque. O premiado 17 Quadras retrata uma família negra marginalizada em Washington; Esse É o Meu Desejo é outro demonstrativo: o longa lança um olhar sobre a Nigéria a partir de dois personagens que lutam por suas sobrevivências.

A tentativa de conferir diversidade à seleção dos filmes é, segundo o professor do CTR, “fundamental e, hoje, obrigatória”. 

A sensibilidade para com esse fator, atualmente, é uma tendência que atinge grandes festivais no mundo todo, e até mesmo o Oscar. A Academia responsável pela maior premiação do cinema internacional na mais recente edição da cerimônia surpreendeu ao dar a Parasita, um longa de língua não inglesa, a estatueta de Melhor Filme. Além disso, anunciou, em setembro, novas medidas que serão tomadas, com a intenção de aumentar a diversidade da indústria cinematográfica.

“A mostra mostrou que está atenta aos tempos que estamos vivendo e teve esse cuidado. É super importante que todos lutem por esse espaço, mas quem está nesse lugar privilegiado [de curadoria] deve buscar dar esse espaço. Então é super importante o fato de a mostra ter tido tanta diversidade”, comenta Thiago Afonso de André.

O especialista utiliza o vencedor do Prêmio Júri de Melhor Ficção, Esse É o Meu Desejo, para ilustrar a importância da utilização do critério diversidade ao se pensar uma mostra. O longa, de protagonista negro, equipe majoritariamente negra e que se passa na Nigéria, “apesar de ser um filme incrível, talvez, se não houvesse esse tipo de cuidado, por vir de um país sem tanta tradição cinematográfica, poderia não ter ganhado tanto espaço”.

Cidade Pássaro e o vôo de um título selecionado pela mostra

Outro filme selecionado para a mostra capaz de demonstrar dentro de si — em termos de pluralidade — a totalidade do festival é Cidade Pássaro, produção nacional dirigida por Matias Mariani. Ao contar a história de Amadi (O.C. Ukeje), um rapaz nigeriano que chega a São Paulo com a missão de localizar seu irmão Ikenna (Chukwudi), o filme retrata os meandros da vida de um imigrante vivendo em uma cidade completamente diferente da sua originária.

Para exibir tal realidade, o longa contou com uma equipe extremamente plural. E lidar com tamanha diversidade, de acordo com Matias Mariani, foi uma das principais questões encontradas durante a realização:

“O maior obstáculo [na produção do longa] foi conseguir dar humanidade para tudo isso. Porque eu estava trabalhando com muitos profissionais diferentes, pessoas de muitos lugares diferentes, nacionalidades diferente. A gente tinha roteiristas brasileiros, nigerianos; tinha o O.C. Ukeje que é nigeriano, tinha Chukwudi que era inglês. Acho que concatenar tudo isso em uma direção consistente foi o maior desafio que eu tive”. 

Matias Mariani conversa com O.C. Ukeje durante as gravações de Cidade Pássaro. Foto: Alile Dara Onawale

 

Cidade Pássaro, além de ter sido exibido on-line no Mostra Play, foi apresentado no Belas Artes Drive-in. A ideia nasceu quando Matias Mariani, com apenas 20 anos, se mudou para os Estados Unidos e lá decidiu que gostaria de “narrar a transformação que há no olhar quando se chega em uma cidade nova”. Ao compor a Mostra de São Paulo, a produção “completa um ciclo”.

“Falando de um lugar muito pessoal, pra mim, é incrível [fazer parte do festival], porque eu fui muito formado na mostra, foi o lugar o em que eu me descobri cineasta. E muito dos estilos que me influenciaram para fazer o Cidade Pássaro vieram de filmes que eu vi na mostra também. Muitos filmes que discutem São Paulo como São Paulo S.A, Terra estrangeira e outros que eu gosto… Então é muito bonito ver que meu filme vai passar no lugar em que todos esses filmes passaram”.

Matias Mariani

Para além de realizações pessoais, Afonso de André relembra que as negociações de contratos com festivais são, de um ponto de vista financeiro, essenciais para as produtoras brasileiras, devido à falta de incentivo governamental que o audiovisual enfrenta no país. O especialista completa sobre a importância de fazer parte do evento para um cineasta: “ Ser selecionado para a mostra é um atestado de que seu filme tem qualidades; você está fazendo sua estreia cercada de outros filmes muito bons e uma história de filmes muito bons”.

Diversidade também nos homenageados

Como já citado, em uma mostra como a de São Paulo, a tendência é que a diversidade ganhe protagonismo colocando a beleza individual dos títulos em segundo plano. A exibição de longas de Fernando Coni Campo (1933-1988), no entanto, merecem realce, de acordo com o professor do CTR: “Talvez o grande destaque individual tenha sido esses filmes do Fernando Coni Campos, que são filmes brasileiros pouco acessíveis, de um cineasta que merecia um espaço destacado em um evento como esse”.

Homenageado pelo festival, o cineasta originário do Recôncavo Baiano produziu durante sua carreira sete longas e 11 curtas. O festival exibiu três de seus filmes. Foram eles Viagem ao Fim do Mundo, considerado por muitos o precursor do filme-ensaio ao exibir uma reinvenção de Memórias Póstumas de Brás Cubas; Ladrões de Cinema, obra mais famosa do autor, que retrata uma produção cinematográfica realizada por moradores de uma favela no Rio de Janeiro; e O Mágico e o Delegado, último longa do cineasta, que retorna ao mundo fantástico da infância e dos artistas de circo para recriar a atmosfera do país sob a derrocada do “milagre econômico”.

Convidados relembram bons momentos de Coni. Em ordem da esquerda para direita, Maria do Rosário Caetano, Joel Pizzini, Luís Abramo, Antônio Pitanga e Tânia Alves. Foto: Reprodução

 

Outro celebrado pela mostra foi Frederick Wiseman, um dos mais importantes e autênticos realizadores em atividade no mundo, que levou o um dos prêmios Humanidade. Dedicado ao cinema documental há mais de cinco décadas, o autor teve exibido pelo festival seu longa City Hall, em que retoma o grande tema de sua trajetória: as instituições sociais e sua relação com as cidades e comunidades.

Além de de Coni Campos e Wiseman, Sara Silveira foi homenageada ao receber o Prêmio Leon Cakoff. Com cerca de 40 longas-metragens no currículo, a produtora é conhecida por revelar realizadores novatos para o mundo do cinema — muitos, hoje, já estabelecidos e renomados.

Lembrança à cinemateca: gratidão aos funcionários e crítica à administração

Apesar da relevância de cada uma dessas homenagens, a celebração de fato estonteante foi a entrega de um Prêmio Humanidade, pela primeira vez na história, a um grupo de pessoas. A gratificação, que busca relembrar personagens de destaque por seus trabalhos com valores humanistas, neste ano foi recebida pelos funcionários da Cinemateca Brasileira. 

O espaço que abriga o maior acervo audiovisual da América do Sul vive, hoje, um quadro dramático. Negligenciada pelo Governo Federal, que a administra, não vem recebendo os recursos financeiros necessários para sua preservação e se mantém por meio de vaquinhas e contribuições voluntárias.

Passando por incêndios, trocas de gestão, além de mudanças de sede, a sobrevivência da Cinemateca se deve — de acordo com Afonso de André — ao trabalho realizado pelos funcionários que ali atuam, responsáveis pela manutenção do acervo audiovisual de 30 mil títulos, produzidos desde o início do século 20.

“[O acervo] requer um enorme cuidado. Requer manutenção constante. Requer uma infraestrutura, profissionais qualificadíssimos para cuidar disso, restaurar o que precisa ser restaurado, converter o que precisa ser convertido e para organizar isso de maneira acessível, porque é um volume enorme”.

A Cinemateca Brasileira é considerada o maior acervo audiovisual da América Latina. Foto: Andréia Galliano/Flickr

 

A entrega do prêmio é o reconhecimento do trabalho dos funcionários, um esforço que “garante que as próximas gerações poderão assistir aos filmes realizados no passado e, com isso, “entender a história da nossa sociedade e da nossa produção cultural”, diz o professor da USP.

Matias Mariani, assim como Afonso de André, considera “uma vergonha” a situação pela qual passa a maior cinemateca da América Latina : “A gente tem uma responsabilidade de cuidar da cinemateca perante o mundo, a memória de muitos seres humanos está registrada lá, a memória coletiva está guardada lá. Então acho muito importante essa homenagem para os funcionários, isso me dá alguma esperança”.

A decisão da mostra de homenagear esse grupo de pessoas, porém, pode ser vista como uma crítica que vai além da situação do prédio histórico. No Fórum Mostra, momento do evento em que especialistas debateram diversas questões que dizem respeito ao presente e ao futuro do audiovisual no país, os convidados comentaram as dificuldades que realizadores brasileiros vêm encontrando no momento atual, abordando, inclusive o financiamento do cinema nacional.

Durante os três dias de debate (28 de outubro a 30 de outubro), que foram transmitidos pelas plataformas da Mostra e também pela do Itaú Cultural, outro tema levantado foi a realidade do cinema brasileiro durante a volta das atividades — anteriormente paralisadas devido à pandemia. Matias Mariani, que por meio de sua produtora, a Primo Filmes, vivencia de perto esse momento, comenta as dificuldades com as quais vem se deparando.

“Eu diria que a pandemia foi fichinha perto do governo Bolsonaro. Acho que a principal coisa que afetou o audiovisual brasileiro foi o governo que declarou uma guerra direcionada mesmo contra o audiovisual, contra a cultura como um todo. Isso teve um efeito muito grande. A Ancine está completamente paralisada. Os projetos e longas não só da minha produtora, mas também de todo mundo que converso foram prejudicados seriamente”.

Mais acessos, menos magia: a mostra on-line

Pela primeira vez em 44 anos de história, devido aos riscos acarretados pela pandemia do coronavírus, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo teve de ser realizada on-line. Durante as duas semanas de evento foi possível se observar pontos positivos e negativos desse formato — definido por Afonso de André como “o formato do possível”.

Por um lado, neste ano o festival pôde atingir um número maior de pessoas, já que não houve necessidade de locomoção até o local do evento e também por apresentar os títulos a valores mais acessíveis. Alguns longas foram disponibilizados gratuitamente, outros a R$ 6. Além disso, depois de alugados, os filmes poderiam ser assistidos em um intervalo de 24h. Isso, de acordo com o professor do CTR, agregou em flexibilidade, já que as sessões fixas dos cinema habituais não abrem esse tipo de espaço.

O evento apresentado por Renata de Almeida, diretora da Mostra, e por Serginho Groisman. Foto: Reprodução

 

Mas, nem tudo foram rosas: o fato de o festival não ocorrer presencialmente fez com que parte da essência do cinema escapasse da mostra.

“Não se iguala a sensação de estar em uma sala de cinema. A sensação de estar em uma sala, com as luzes apagadas; você não vai mexer no seu celular; tem muitas pessoas junto com você, com aquele mesmo compromisso de prestar atenção no filme; você tem a tela grande tapando todo seu campo de visão; você vai entrar no filme como em nenhuma outra situação”.

– Thiago Afonso de André

Apesar dessa perda, o professor afirma que os organizadores do festival merecem elogios pela realização do evento. Isso porque repensar a distribuição dos filmes de maneira tão drástica exige, além dos esforços técnicos (seleção e utilização das plataformas, adaptação dos conteúdos, etc.) uma complexa renegociação contratos.

“Houveram diversos festivais internacionais que simplesmente não aconteceram. Por isso é um mérito enorme. E [a Mostra de São Paulo] foi algo grande, com muitos filmes legais, não algo pequeno, então todas as parabenizações”, aponta o especialista.

Lutas e revelações: são quarenta e quatro anos de história

A Mostra Internacional de Cinema foi criada por Leon Cakoff em 1977, quando o Masp (Museu de Arte de São Paulo) celebrava os seus 30 anos de fundação. Em sua primeira edição, o festival, que tinha como ideia exibir e premiar filmes de dentro e de fora do Brasil, apresentou 16 longas-metragens e seis curtas, o que contabilizava produções de 16 países diferentes. 

O festival viveu sob o regime militar suas primeiras sete edições e sofreu nesse período severas dificuldades, devido à vigência da chamada Lei de Censura, promulgada pelo regime em 1968. Desligada do Masp em 1984, a mostra desafiou o controle da lei ao instaurar, contra a União, um processo que reivindicava o direito de apresentar os filmes selecionados diretamente ao público, sem censura prévia.

Idealizada por Leon Cakoff, a Mostra nasce no aniversário de 30 anos do MASP. Foto: Rafael Neddermeyer/ Fotos Públicas

 

Chegando a sua 44ª edição, a mostra é, hoje, considerada o maior evento de cinema do país e “conquistou esse papel pela qualidade da sua programação e pelas pessoas que fazem sua curadoria”, pontua Afonso de André.

Nessas mais de quatro décadas, diversos renomados cineastas, do Brasil e de fora dele, já passaram pelo evento. Dentre os convidados internacionais de destaque estão Dennis Hopper, Pedro Almodóvar, Miguel Gomes, Victoria Abril, Jane Birkin, Guy Maddin, Claudia Cardinale, Quentin Tarantino, Maria de Medeiros, Wim Wenders, Alan Parker, Kiju Yoshida, Atom Egoyan, Danis Tanovic, Christian Berger, Marisa Paredes, Rossy De Palma, e Jonas Mekas.

“A mostra foi o primeiro lugar em que a gente viu muitos diretores que hoje são grandes nomes do cinema. Então não é qualquer filme que entra na mostra hoje em dia” conclui o professor do CTR.