Pandemia e isolamento: membros da Universidade criam aplicativo de apoio psíquico

Desenvolvido por grupo multidisciplinar, aplicativo COMVC se torna opção para obter informação e auxílio no cuidado com saúde mental

por Ana Beatriz Garcia e Ana Luiza Cardozo

Foto: Marcela Schwab e Gabriel Di Pietro

 

Mais de um ano após o início da pandemia de covid-19, os efeitos do isolamento social e do ensino a distância são fortemente sentidos por docentes, discentes e funcionários do ensino superior. O quadro de incertezas, a sobrecarga mental e a impossibilidade de conviver socialmente e assistir aulas de forma segura sem o uso de meios eletrônicos levaram ao aumento do número e intensidade das questões de saúde psicológica, dentro e fora do ambiente universitário. 

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), cerca de 60% da população mundial já sofre de fadiga pandêmica, termo que descreve o cansaço e a desmotivação causados pela hipervigilância e medo de um vírus invisível. Entre os principais sintomas da síndrome, estão ansiedade, apatia, alterações no sono e no apetite, desânimo e preocupação excessiva.

Além do perigo do Sars-CoV-2, o distanciamento social persistente também afeta nossos mecanismos de defesa diante de uma ameaça.

“A primeira coisa que esta pandemia gera é medo e medo gera aproximação. O indivíduo se percebe ameaçado e quer saber como se defender, por isso, ele procura outros. A própria característica desta ameaça geradora de medo é o isolamento, então esta ameaça, que é o novo coronavírus, tira de você uma defesa”, explica Sigmar Malvezzi, professor da Faculdade de Psicologia da USP.

“Além disso, precisamos do contato com outras pessoas, porque é através dele que estabilizamos o ambiente social e afetivo. Algo muito importante na rotina é o reconhecimento do nosso papel e nosso mérito em diferentes áreas da vida, o contato com os outros dá muitos sinais desse reconhecimento que todos nós precisamos”, conta.

Nossa estabilidade mental ainda é influenciada pelas ferramentas que usamos para suprir a falta das interações presenciais, como as plataformas de videoconferência. Aliadas na retomada das atividades cotidianas, seu uso excessivo provoca uma espécie de exaustão, chamada de “Zoom fatigue” ou “fadiga do Zoom” por pesquisadores da Universidade de Stanford. A sensação de cansaço seria causada principalmente pelo cansaço visual decorrente das telas, mobilidade corporal reduzida, olhar a própria imagem em demasia e uso exagerado de comunicação não-verbal.

Saúde mental na palma da mão?

Nesse cenário, e com as limitações impostas pelas recomendações de que as pessoas, se possível, fiquem isoladas em casa, observou-se a intensificação no uso de aplicativos ligados aos cuidados relativos à saúde – física e mental – de seus usuários. “Justo no dia em que tudo fechou, comecei a trabalhar e iniciei meu mestrado. Fazer tudo isso junto, de maneira nova, em home office e cuidando das questões de casa, foi muito difícil. Vivia ansioso de uma forma que me paralisava. Mas com exercícios diários de respiração, às vezes gastando menos de 10 minutos, minha ansiedade diminuiu muito e meu foco aumentou”, afirma Victor Veloso, 25 anos, estudante de mestrado em Guerra Cibernética e Vigilância Massiva no Instituto de Relações Internacionais da USP, usuário de um aplicativo de meditação guiada.

Já Gabriella Sales, 19 anos, estudante de Jornalismo da ECA, a experiência não foi tão positiva. “Não consegui me adaptar aos áudios, nem achar uma meditação que realmente fizesse sentido para mim. Depois disso, tentei fazer meditação sozinha, sem guia, mas acabei deixando para lá. Procurei uma psicóloga e hoje faço terapia on-line”, conta.

O fenômeno não é novo – aplicativos como o utilizado pelos estudantes já existem e são difundidos há alguns anos -, mas passou a atrair mais atenção e esforços após o início da pandemia, com o desenvolvimento de projetos, inclusive dentro da Universidade.

É o caso do aplicativo COMVC, desenvolvido pelo grupo multidisciplinar ARGO – Inovação em Saúde, da USP, inicialmente como uma ferramenta de auxílio aos funcionários do Hospital das Clínicas que estavam atuando na linha de frente do combate à covid-19, e posteriormente divulgado para a comunidade universitária como um todo.

Telas do aplicativo COMVC, que oferece questionário e conteúdo sobre temas diversos relacionados à saúde psicológica e opções de encaminhamento para atendimento profissional. Reprodução

 

Segundo Daniel Fatori, pós-doutorando da FMUSP e coordenador do desenvolvimento do COMVC, o aplicativo tem três objetivos: a psicoeducação, o monitoramento e o encaminhamento. A psicoeducação tem uma finalidade educativa para a comunidade: “É a ideia de ensinar as pessoas, principalmente as leigas, sobre os diversos conceitos relacionados à saúde mental, ajudar a distinguir a ansiedade normal da ansiedade excessiva, tristeza, depressão, raiva, burnout, estresse, questões de sono, entre outros”. 

Outros vídeos trazem conhecimento de “ferramentas” para lidar com tais sentimentos. “Há conteúdos que vão ensinar como lidar com esses problemas – vídeos ensinando a fazer respiração diafragmática, a praticar mindfulness (técnica da atenção plena da mente), como aprender algumas técnicas que usamos bastante na clínica e podem ajudar em questões como depressão e ansiedade”, explica Fatori.

O monitoramento, por sua vez, se dá a partir de um questionário. Com as respostas oferecidas pelo usuário, o algoritmo do aplicativo realiza uma identificação do quadro e da gravidade da situação do usuário, podendo orientá-lo a procurar um profissional de saúde se houver necessidade. Para casos em que é percebida uma classificação mais séria, o aplicativo realiza um encaminhamento a partir do perfil do usuário. A equipe de desenvolvimento realizou parcerias para disponibilizar uma linha direta de atendimento para profissionais do SUS e, posteriormente, também para professores da rede pública de ensino. Também foram celebradas parcerias com locais que fazem atendimento psicológico gratuito interessados em fazer parte desse sistema de encaminhamento.

Fatori, no entanto, explica que o aplicativo tem limitações, mas que pode ser uma ferramenta para identificar questões a serem endereçadas com auxílio de pessoas especializadas.

“É um aplicativo que não tem a função de substituir o profissional, nem tem nenhuma ideia de substituir o sistema de saúde, mas de ajudar a população a entender a saúde mental e saber procurar ajuda no momento certo. Temos o interesse de ‘empurrar’ as pessoas na direção correta – ajudá-las a perceber que têm um problema e que podem procurar ajuda. O aplicativo auxilia nessa procura ao oferecer essas opções de encaminhamento”.

Aplicativos como o COMVC trazem avanços na popularização do tema e na quebra do estigma ainda existente com relação ao sofrimento psíquico, que se torna mais palpável e numeroso em suas manifestações com o momento de crise sanitária e social atuais. No entanto, é preciso que se faça seu uso com cautela e de forma consciente.

É a opinião de Malvezzi, para quem os aplicativos podem gerar frustração no usuário. “Ele pode achar que está tranquilo quando, na verdade, está ansioso. Os usuários precisam de orientação, precisam ser treinados para entender o que o aplicativo pode fazer, como receber os feedbacks”, afirma. Outro risco apontado pelo pesquisador é o da utilização de questionários com um número limitado de opções de resposta. “[Eles] simplificam muito algo que é complexo, que é a subjetividade humana. Todo instrumento amplia nossas habilidades, mas precisamos saber usá-los para não empobrecer nossas subjetividades”.