“Tínhamos medo de nos encontrar com ele”, diz professora do IB que denunciou colega por assédio

Mulheres do Instituto de Biociências (IB) denunciam Eduardo Gorab há seis anos relatando perseguições e agressões verbais

 

 

por Beatriz Carneiro e Ramana Rech

Arte: Matheus Alves 

 

Os últimos anos de graduação de Joana* no Instituto de Biociências (IB) foram marcados por passos apressados e medo no prédio do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva. Ela conta que o ex-professor Eduardo Gorab a perseguia nas escadas e corredores do edifício. 

Após 20 anos dos primeiros acontecimentos relatados e dois processos administrativos, a demissão de Gorab saiu no diário oficial do estado de São Paulo no dia 17 de junho de 2021. Na teoria, ele foi demitido por “procedimento irregular, de natureza grave”, conforme artigo 256, inciso II, da Lei Estadual 10.261/1968. Porém, mais do que isso, o desligamento de Gorab decorreu de denúncias de assédio moral e sexual de colegas de trabalho e alunos, em que as mulheres não foram as únicas vítimas, mas a maioria. 

Já mais velha e professora no IB, hoje, Joana percebe que essas vivências consistiam em, principalmente, assédio sexual. Ela conta como era explícito o quanto Gorab a perseguia. “Aconteceu mais de uma vez de eu perceber que ele ia para um lado do corredor, eu para outro, ele me via e vinha atrás no mesmo lado do corredor”, afirma. Nessas ocasiões, Joana apertava o passo, mudava de lado ou, até mesmo, se escondia no banheiro. 

Ela nunca denunciou e parte disso se devia ao receio de ser ridicularizada pelas autoridades da Universidade e do Instituto. “Tinha um professor que falou pra mim: ‘você é bonitinha, mas burrinha, né?’. Como eu vou falar que eu sou perseguida por outro professor? Acho que nem cabia”, explica. 

As primeiras denúncias contra Gorab aconteceram apenas em 2015 e partiram de duas alunas. As acusações de assédio moral e sexual foram levadas ao então diretor do IB, Gilberto Xavier, por intermédio do coletivo feminista do Instituto, o Trepadeiras. Esse primeiro processo levou, em 2017, à suspensão não remunerada do professor por 40 dias. 

Júlia*, representante do IB Mulheres, grupo criado em 2017 diante da necessidade de se formar um grupo para lidar com desigualdades de gênero no instituto, acompanhou os casos e não quis se identificar por medo de retaliação. Ela ressalta que essas não foram as únicas vítimas do professor, mas muitas não quiseram denunciar. “As coisas que estão no processo são só um pedacinho de tudo que ele já fez”, afirma.  

Com o retorno do docente à sala de aula depois dos 40 dias, a sensação das vítimas era de que o processo não havia sido finalizado. Gorab nunca parou de abusar. Júlia traça um perfil de perseguidor e diz que o professor costumava fazer agressões verbais ao cruzar com as vítimas.

Em 2019, foi aberta outra vez uma sindicância para apurar as acusações contra o docente. Dessa vez, as denúncias foram levadas à Reitoria e houve maior participação do IB Mulheres

Perseguição dentro do Campus 

Luana*, colega de departamento de Gorab, que apoiou as alunas vítimas no primeiro processo, relembra o fatídico dia de 11 de novembro de 2019, em que saía do prédio da administração em direção à zoologia. Ela relata que, enquanto conversava com uma funcionária, ele a observava. “Fiquei muito nervosa com isso. Dei um tempo para não sair junto dele e continuei a conversa”. Essa ação não foi suficiente, porque ele a esperava na porta do prédio: “comecei a andar e ele começou também”.

A professora conta que, inicialmente, as agressões eram feitas de forma aleatória quando o docente cruzava com alguém dentro do Departamento. Porém, o professor começou a arquitetar ameaças, mudando a forma como agredia as vítimas. Ela comenta que, ao  prestar mais um boletim de ocorrência contra o docente, foi informada pelo delegado que a perseguição tipificava como ameaça. 

Luana diz que o professor fez um estardalhaço por perder os processos em 2017. Ela conta que, depois, parecia que o docente havia se acalmado, mas ele continuou com as agressões: “Principalmente as alunas, o professor xingava com palavrões de baixo calão. E elas ficavam receosas”. 

A história não parou por aí. Em setembro de 2019, Luana relata que o professor premeditou uma agressão. Isso se deu por meio de bilhetes anônimos com xingamentos que foram endereçados por ele a duas alunas e duas professorasO docente deixava os bilhetes nas salas frequentadas pelas vítimas de três a quatro vezes por mês, sendo a última ação pega pelas câmeras de segurança. Os bilhetes costumavam ser deixados às 7 horas, horário vazio do IB.

 Momento em que Gorab é flagrado por câmeras de segurança deixando bilhetes para as vítimas. Foto: reprodução/Folha de S.Paulo

 

Na matéria da Folha de S. Paulo saíram imagens desses bilhetes. “Vocês viram as imagens dos bilhetes com xingamentos. Revê-las expostas nos causou angústia de novo porque revemos tudo e ainda mais exposto em matéria da Folha de S. Paulo”, relatou Luana.

Os gargalos da Universidade e as punições 

Gorab não foi demitido por importunação sexual nem por assédio moral porque não há esse termo no Estatuto dos Servidores na USP. “Nos regimentos da USP não existia a palavra mulher em nenhum lugar dos procedimentos, ou seja, a questão de gênero era inexistente até então”, declara a professora Luana. Essa postura da universidade de não reconhecer por meio do regulamento o assédio contra a mulher dentro de um ambiente universitário acarretou em muito sofrimento para as vítimas.

A abertura de uma sindicância em 2015 para investigar as denúncias já foi um grande evento.  “É raríssimo um diretor dar bola pra esse tipo de denúncia”, explica Luana. 

O desligamento do professor, por sua vez, foi uma vitória bastante custosa. “ A gente teve que realizar uma movimentação gigante na justiça criminal, com o apoio de professores e com denúncias de alunos”, relata Júlia, representante do IB Mulheres. 

Levar dois anos para primeira punição foi muito desgastante para as vítimas, e o que piorou a situação foi a não divulgação do ocorrido por parte do IB. “Todo mundo do Instituto sabia, mas em conversas de café. E isso é uma coisa que nunca aceitamos porque tinha que estar na página do IB com o nome do professor”, enfatiza Luana. É necessário que exista um posicionamento institucional para que os abusos no ambiente universitário não sejam naturalizados.

O Estatuto dos Servidores da USP prevê a demissão do funcionário em caso de reincidência da infração já punida com afastamento. Para Júlia, o que explica a atitude do professor de continuar os assédios, ainda que tivesse grandes chances de ser demitido, é a sensação de ser “intocável”. Até porque demissões por má conduta não são uma realidade na USP. 

A professora Joana ainda enfatiza que o abuso de mulheres é autorizado na instituição e que a denúncia é muitas vezes desencorajada, inclusive pelos próprios docentes, a exemplo do caso Gorab. “As mulheres são vistas como uma categoria que pode ser assediada, tanto moralmente, como sexualmente.”

O último processo ficou parado por um tempo por conta da pandemia e a  suspensão preventiva do professor, mecanismo que prevê o afastamento do acusado de suas funções enquanto o caso ainda está em análise, expirou. No início de 2021, ele pôde voltar a lecionar e como muitos alunos relataram desconforto durante as aulas, o IB Mulheres redigiu uma carta à Reitoria pedindo maior rapidez no processo.  O texto dizia: “A situação supracitada tem causado uma sensação de insegurança e de impunidade na nossa comunidade do IB e atinge não somente a imagem do Instituto de Biociências, mas da própria Universidade de São Paulo”.

Segundo Joana, a carta sofreu certa resistência ao passar pela congregação do IB sob a justificativa de que a Unidade já havia cumprido seu papel. Quando a pauta dos processos de Gorab era levantada, por vezes, a reação era de coação. “Vinha um discurso um pouco de proteção, de: ‘cuidado, vocês não podem falar sobre isso, porque podem ser processadas, é melhor vocês recuarem’”.

Como denunciar? 

A professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, Coordenadora do Escritório USP Mulheres, explica que qualquer pessoa que viveu uma situação de violência, humilhação ou discriminação no âmbito da USP pode formalizar uma denúncia sobe o ocorrido. 

A denúncia pode ser feita junto à Comissão de Direitos Humanos da unidade da vítima ou de onde aconteceu a violação. De acordo com a coordenadora, ainda tem outras possibilidades, como a formalização nas ouvidorias locais ou na Ouvidoria Geral da USP. 

Fora isso, a USP possui o aplicativo Campus USP, que pode ser instalado de forma gratuita, no qual é possível registrar ocorrências e acionar imediatamente a Guarda Universitária ou colocar o celular em estado de alerta pelo tempo que considerar necessário. 

O JC entrou em contato com a comunicação do IB USP e da Reitoria, mas ambos não quiseram se posicionar, alegando que o processo ainda está em situação de recurso por parte do acusado. 

Pelo regimento da USP, Gorab teve dez dias para pedir recurso. À Folha, o ex-professor disse que essa é sua intenção e que ainda se considera professor do Instituto. Procurado pelo JC, Gorab não respondeu aos pedidos de posicionamento até o fechamento da matéria. Para pressionar a Reitoria a negar o recurso de Gorab, o IB Mulheres criou uma petição de manifestação contra violência de gênero.

*Os nomes foram trocados a pedido das fontes