Uma carta para o futuro

Aos alunos de Jornalismo da turma de dois mil cento e vinte um (2121)

 

 

por Suzana Correa-Petropouleas

Foto: João Mello

 

Olá, longínqua caloura ou calouro. Escrevo para você de uma manhã morna de céu azul na capital paulistana. É junho de 2021 e as notícias sobre mortes ainda empilham-se e atropelam-se, uma atrás da outra. Isso, de alguma forma, parece deixar o céu menos bonito do que ele me parecia anos atrás. Por outro lado, se você estiver agora na Escola de Comunicações e Artes da USP (ou onde ela era hoje) e olhar para o céu, há grandes chances de encarar o mesmo pedaço de azul que eu costumava admirar, cem anos antes de você. Isso não é incrível?

Talvez você se pergunte porque decidi escrever de tão longe e de tempos tão difíceis. A verdade é que a mera ideia da sua existência me enche de esperança e você pode imaginar o quanto temos precisado dela. Escrever para você requer acreditar que, em cem anos, a universidade, o jornalismo, a democracia e jovens estudantes de jornalismo, como você, ainda existirão. Terão resistido. Talvez isso te surpreenda, mas nenhuma dessas permanências é hoje uma certeza. A vida como a conhecemos nunca pareceu tão frágil. 

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Há mais de um ano, líamos notícias sobre as mortes relacionadas ao novo coronavírus que ocorriam do outro lado do mundo e seguíamos nossas vidas como se nada estivesse acontecendo. Agora, fico abismada com a nossa ignorância e indiferença, à época, sobre o que realmente acontecia. 

Nos meses seguintes, o mundo parou. Como talvez nunca antes. Literalmente milhões morreram de uma doença que pouco tempo atrás sequer existia. Pela primeira vez na vida, lidamos com a hipótese de que todas — todas — as pessoas que amávamos poderiam morrer num futuro próximo. Quando comparam essa época com eventos traumáticos da magnitude de grandes guerras mundiais, imagino que é mais ou menos a esse tipo de sensação que se referem. 

Há muitas coisas que queria te contar sobre o último ano, que talvez não estejam nos livros de História que você leu a respeito, mas também não cabem na quantidade de caracteres máximos que esse texto pede e que nunca seriam o suficiente.  

Seria injusto não te falar, primeiro, sobre o antes. Sobre jovens que sonhavam com carreiras em redações que nem existem mais, sobre a euforia da aprovação, as novas amizades, a animação com as produções, as risadas em sala de aula, os bares, a última festa antes de tudo. E sobre nossas decepções e paixões pelo jornalismo e além dele. Você provavelmente as conhece também. 

Mas queria mesmo era te contar sobre como o anúncio do primeiro caso confirmado do vírus no Brasil veio numa quarta-feira de cinzas, após um carnaval de muita alegria e aglomeração. E como recebemos a notícia com uma indiferença quase cômica sobre sua gravidade, ainda que uma tensão tênue já pesasse no ar. No mercado, encarando uma prateleira vazia de álcool em gel comprados às pressas por clientes mais rápidos, pude senti-la como um daqueles arrepios breves que sobem à nuca. 

Dali em diante, a impressão é que as coisas começaram a acontecer de maneira muito acelerada: as notícias de que o vírus tinha se espalhado, o anúncio de uma pandemia mundial, as empresas que mandavam os funcionários para casa às pressas, a suspensão de aulas, o esbarrão de um senhor idoso em mim ao sair nervoso e apressado da farmácia para procurar álcool em gel na próxima, porque ali, assim como em todas anteriores, já não tinha mais nenhum para vender. 

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Queria te contar como foi bonito passar mais tempo com as pessoas que amamos nos meses seguintes, mas como meu coração pesava toda vez que pensava em perdê-los, ou quando pensava em quem estava trancado em lares infelizes ou violentos, sozinho ou longe de quem gosta. “Se puder, fique em casa”, diziam exaustivamente na TV e internet. E quem não pode? 

Queria te dizer sobre o susto que levei na primeira vez em que saí para comprar comida e vi o absoluto e inédito vazio das ruas. E como foi estranho sentir que, pela primeira vez, o mundo inteirinho estava preocupado  exatamente com a mesma coisa que eu. Unidos pelo medo da morte. E existe sentimento mais universal que esse? 

Queria compartilhar com você os efeitos físicos e inéditos dos meses de isolamento que marcaram nosso corpo, como não achei que fariam. A tontura ao andar de carro novamente, o coração acelerado de receio na primeira vez em que, a pé, desviei do caminho ao mercado distraída e me encontrei numa rua cheia de pessoas esbarrando-se umas nas outras de novo, depois de meses. 

E te contar sobre como é começar no jornalismo cobrindo mortes e mais mortes na crise sanitária do século. E sobre todas as palavras que há pouco não significavam muito e hoje estão surradas tamanho nosso uso: coronavírus, pandemia, máscara, isolamento, média móvel, cepa, lockdown. E te contar como é estranha a sensação de um dia se despedir de seus amigos e professores pensando em voltar a vê-los na semana seguinte e só reencontrá-los dois anos depois (se tudo der certo). 

Gostaria de te dizer como é confuso e desnorteador viver num país em que parte da população se preocupa com o peso ganho no período do isolamento, enquanto boa parte se angustia com a fome. Queria te teletransportar para uma noite quente qualquer em que as panelas começavam a soar nas janelas e a gente sentia que estava menos sozinho na nossa indignação. 

Também queria te falar sobre como as máscaras também eram difíceis de achar no início, como me senti usando uma antes que se popularizassem e como me sinto ainda hoje quando saio na rua e nos vejo mascarados. Um apresentador de TV no início da pandemia dizia que “a minha máscara te protege, a sua máscara me protege”. Vejo no uso das máscaras um fiapo de um pacto de civilidade e solidariedade com os nossos que, na maior parte do tempo, parecemos esquecer. 

E é sobre a ausência desse pacto que mais quero falar a respeito contigo. Você já deve saber: o negacionismo e a incompetência levaram à morte desnecessária de milhares. Caminhões carregaram corpos na Europa, hospitais lotaram Brasil afora. Grávidas deixaram filhos cujos rostos nunca conhecerão, o amor da vida de alguém morreu sem oxigênio no norte, filhas e filhos amados faleceram sem leitos no sul, mães e pais partiram enquanto esperavam ansiosos por uma vacina em São Paulo.

Quando pensei pela primeira vez em escrever para você, eram cerca de 220 mil mortos no Brasil. Agora já são 474 mil. Quatrocentos e setenta e quatro mil famílias enlutadas por uma doença que meses atrás nem sabíamos que existia — e hoje levou embora parte dos nossos pais, mães, professores, companheiros, tios, avós e colegas. De ontem para hoje foram 1.660.  Mil seiscentas e sessenta famílias enlutadas por uma doença para a qual, hoje, já existe vacina. 

Por isso te escrever me traz esperança, mas também desconforto. É incômodo pensar sobre tudo o que aconteceu. Me convenço a continuar por lembrar de algo que aconteceu meses atrás. 

No começo da pandemia, um professor nos pediu que escrevêssemos sobre o que vivíamos. Não uma reportagem factual, não um trabalho complexo e oneroso que seria feito às pressas por estudantes cansados depois de um dia inteiro de trabalho reportando mortes e assistindo aulas remotas. Não. Um texto sobre como era viver e sentir tudo aquilo. Eu não queria. Mas, no final, cada palavra que escrevi teve gosto de alívio e sensação de bote salva-vidas em meio ao dilúvio. 

Às vezes me pego pensando com gratidão nesse mestre que, em meio ao caos, fez aprendizes da palavra relembrarem como ela pode ser santo remédio e alento. Infelizmente, ele faleceu semanas depois. E não do vírus quase como um lembrete amargo da vida para nós, dizendo que, mesmo quando morte é tudo o que se vê, ainda há muitas formas diferentes de se morrer.

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Penso também em cada um de nós que perdeu alguém para a doença, que não pôde se despedir de alguém e hoje encara a brutalidade do descaso. Encaramos. Passamos pelo ano mais letal da história do Brasil e vivemos dias com recordes de mais de 4 mil mortes pela doença, mas o isolamento tornou-se só uma lembrança para a maioria. 

Alguém que perdeu o avô para o vírus lembra que ele citava John Donne, em sua Meditação XVII, em que dizia: 

Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado, todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. 

Eu te escrevo hoje na esperança de que estas palavras sejam mais verdadeiras no seu tempo do que são no meu. 

Talvez nenhum homem seja uma ilha, mas hoje encaramos o oceano de indiferença que existe entre nós. Vence o  individualismo e o egoísmo, banalizamos a morte ainda mais do que antes. E pensávamos que crianças morrendo de fome num mundo que produz toneladas de comida e pobres morrendo de frio na Praça da Sé em todo inverno eram o máximo de frieza a que chegaríamos.

“Todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo”. Gostaria de te ouvir.  De que tamanho você vê os homens do meu hoje, que deixaram os seus morrer — antes e durante a pandemia — de forma tão leviana e com tanta indiferença? 

Você entende agora a potência da mera ideia de você? 

O que eu queria mesmo era dizer aos quatrocentos e setenta e quatro mil e seiscentos e quatorze que se foram que nossos sinos dobram por cada um deles. Que continentes inteiros, de fato, se partiram com cada adeus. E que é assim, prestando deferência às suas ausências e a dor dos seus, que eu e meus colegas nos agarramos ao que resta da nossa humanidade. 

Mas não posso dizer a eles, então digo a você. De certa forma, talvez eu esteja escrevendo para te lembrar: você também é cada um deles. E um de nós. Se olhar para o céu agora, pode admirar o azul infinito como costumávamos admirar, cem anos antes de você. 

Isso não é incrível?

um abraço,

s.c.p.

São Paulo, 2021