Faz escuro…mas a Bienal canta

 34a Bienal de SP traz cultura, inovação tradição e resistência

por Luana Machado

Arte: Matheus Nascimento

 

“Madrugada camponesa, faz escuro ainda no chão, mas é preciso plantar. A noite já foi mais noite, a manhã já vai chegar”.

Assim, se iniciam os versos do poema “Madrugada camponesa” do poeta brasileiro Thiago de Mello, que profere a máxima “faz escuro mas eu canto” em suas linhas que expressam esperança e resistência e foram escolhidas pelos curadores da 34a Bienal de São Paulo como título da exibição.

O poema escrito na década de 60, período de escuridão na América Latina, é perfeito para definir todos os enunciados expostos nos quatro pavilhões organizados pela Fundação Bienal. Através deles é possível perceber a contação de uma história de perdas, lutas, resistência e muita cultura e beleza.


Setor do artista visual Wapichana Gustavo Caboco. Suas obras fazem um retorno à tradição e cultura de seu povo. Foto: Luana Machado

 

Uma história de sete décadas

Essa Bienal possui várias especificidades. Programada para ocorrer em 2019, seu processo de organização e estreia foi postergado com a chegada da pandemia.

Além disso, coube aos curadores outra difícil tarefa: unir os procedimentos desta edição com os comemorativos dos 70 anos da Bienal de São Paulo.

A Bienal foi criada em 1951, pelo empresário paulista Ciccillo Matarazzo que tinha a ambição de colocar São Paulo como um dos patronos internacionais da arte mundial, equiparada a Veneza.

O desejo se concretizou: setenta anos depois a instituição segue firme como um dos mais importantes eventos do cenário artístico global, e a maior da América Latina.

Em 70 anos, a Bienal foi ambiente e espelho das profundas transformações que passaram no país e no mundo. E, hoje, isso tampouco se modifica, como evidenciado pelo processo escolhido pelos cinco curadores da exposição.

Desde o começo, a 34a Bienal estava prevista como uma série de exibições a serem desenvolvidas processualmente, com ações coletivas, performances, ações em rede e em outros locais da cidade e programas digitais.

O desafio esteve na transformação dos espaços e da temporalidade para caber na proposta que estava sendo desenhada.

“Foi preciso trabalhar com planos a,b,c. Mas houve consenso da relevância de fazer isso, faz parte da proposta da Bienal e dessa edição que mesmo em momentos de conflito, incerteza ou violência a arte não deixa de ter seu papel social. Seja como canal de expressão, seja como canal de diálogo e encontro” conta Paulo Miyada, curador-adjunto da Bienal.


Escultura da canadense Tamara Henderson, exposta no térreo da Bienal. Foto: Luana Machado

 

A ideia do time de curadores foi escolher artistas e obras que cada um considerasse importante e relevante para o momento.

A gente decidiu pensar em uma premissa para essa bienal: de que os sentidos de uma obra de arte não estão dados nem completos no momento em que uma obra é produzida, mas, ao contrário, eles se transformam a partir de quem vê a obra, aonde e qual o seu contexto”. 

Não querendo partir de um conceito consolidado, por mais facilitador que fosse ao processo curatorial, eles optaram por estabelecer conceitos abrangentes, enunciados, que colocassem sobre o mesmo teto artistas e obras de diferentes linguagens e geografias.

O efeito disso para quem visita a exposição é uma sensação de abrangência cultural, de passeio pelos diversos processos criativos estabelecidos ao redor do mundo em momentos adversos.

“Nós entendemos que em vez de um tema poderíamos construir enunciados, que talvez não façam parte do universo da arte contemporânea mas são parte da História e, através disso, nós poderíamos contar uma história, sugerir uma organização, um caminho de ideias, em torno das quais as obras estariam. Então, o título da bienal é para nós um desses enunciados”, conta o curador.


Primeiro setor da amostra que expõe o conjunto de artigos recuperados do incêndio no Museu Nacional. Foto: Luana Machado.

 

Tradição e inovação

Passear pelos corredores da Bienal é também um passeio histórico, especialmente através da América Latina. Com uma quantidade proeminente de artistas latinoamericanos, é contundente o apelo memorialístico presente.

Nos pavimentos revisitamos os últimos acontecimentos políticos do país por meio de uma série de fotografias, produzidas pelo brasileiro Mauro Restiffe, do empossamento de 2003 e 2019.

Além disso, é possível fazer uma visita ao Peru, em toda a sua história de tensão política da década de 70 e sua tradição cultural quíchua (designação aos diversos povos indígenas da região andina que falam a língua que os denomina), exposta no terceiro pavilhão pelo Grupo Cultural Yuyachkani.


Galeria de fotos de Mauro Restiffe. Foto: Luana Machado.

É notável também a valorização da arte indígena, que é exibida em todos os andares da mostra. Entre elas, temos as obras de Jaider Esbell, escritor, pintor e curador macuxi cujos quadros coloridos e psicodélicos levam a uma viagem aos mitos, tradições e locais da Raposa Serra do Sol, em Roraima. O artista, que faleceu em novembro, possui um setor dedicado a suas pinturas.

Quadros de Jaider Esbell. Foto: Luana Machado.

 

Nesta edição, a Fundação também investiu em uma integração com o mundo digital com a produção de podcasts, web stories, entre outros.

Segundo Miyada, isso foi um processo orgânico dentro da história da bienal, o qual apenas teria sido intensificado pela pandemia.

“Ela nunca se propôs como um evento para público especializado, sempre se posicionou como um lugar de encontro que conversasse com muitos públicos, seja em quantidade seja em diversidade. Então, já existia esse interesse que a atuação da bienal não se encerrasse ao final de seu acontecimento físico, espacial, mas que se desdobrasse”, afirma.

Isso, afinal, se concretiza: qualquer um das dezenas de visitantes diários da Bienal de São Paulo sai com a sensação quase incômoda de ter absorvido apenas uma centelha do misto de arte, cultura e história exposta ali, e com o desejo de quem sabe voltar outras vezes ou quem sabe maratonar todo o conteúdo disponível nas plataformas da amostra.