De precursora do feminejo a Rainha da Sofrência, a história e o legado de Marília Mendonça

O falecimento de Marília Mendonça gerou reflexões sobre a cobertura jornalística de tragédias e uma onda de homenagens à cantora 

 

por Ana Carolina Guerra e Lívia Magalhães

Arte:  Iasmin Rodrigues

 

Acidentes de avião, talvez pela ideia de raridade que passam, circundam o imaginário popular de uma forma quase mística. E como não passar essa ideia, quando a chance de sofrer um acidente de avião fatal é apenas de uma entre 11 milhões

Essas tragédias são interessantes e assustadoras porque são (ainda bem) relativamente escassas, mesmo que muitos ainda tenham o medo quase ilógico de viajar de avião — apesar de este ser o segundo meio de transporte mais seguro, ficando atrás apenas do elevador.  

Contudo, essa raridade não impediu de levar grandes personalidades, como o caso emblemático do grupo Mamonas Assassinas, que comoveu o país em 1996 e, mais recentemente, a queda do avião com o clube esportivo Chapecoense, além de outras pessoas públicas e incontáveis anônimos. Agora, no dia 5 de novembro de 2021, levou também Marília.

O avião que conduzia Marília Mendonça para o Aeroporto de Ubaporanga, em Caratinga, Minas Gerais, caiu momentos antes do pouso. A cantora, que tinha um show marcado para a mesma noite no Parque de Exposições da cidade, faleceu de politraumatismo contuso, consequente do impacto da aeronave com o solo. As outras vítimas da tragédia, o piloto Geraldo Medeiros e o copiloto Tarciso Viana, além do produtor Henrique Ribeiro e o tio e assessor da cantora Abicieli Silveira Dias Filho, tiveram a mesma causa de morte. A investigação do acidente ainda está em aberto, e a polícia aguarda análises técnicas para concluí-la. 

Quando a queda do avião foi noticiada, na sexta-feira do dia 5, a assessoria da cantora tinha ouvido de “fontes confiáveis” que todos haviam sobrevivido, e comunicou para a imprensa o bem-estar de Marília e dos outros que estavam na aeronave. Pouco menos de vinte minutos depois, porém, a confusão foi desmentida. Esse tipo de equívoco, infelizmente, é passível de acontecer na cobertura da imprensa, especialmente em casos de catástrofes de interesse público como o falecimento da Rainha da Sofrência. O fator do imediatismo é sempre levado em consideração. As informações devem chegar ao público, aos fãs, o mais rápido possível. E, no calor do momento, decisões difíceis são tomadas. Muitas delas são, no mínimo, questionáveis.

No episódio do podcast ‘Splash Vê TV: o adeus da TV brasileira a Marília Mendonça’, a jornalista Cristina Padiglione comenta, sobre a cobertura televisiva do falecimento da Marília, que a exploração da tragédia começa quando não há mais informação. A audiência viu parte desta exploração quando ligou a televisão na sexta-feira à noite, com repetidas imagens do acidente passando sem parar; e também ao longo do final de semana, com a invasão na privacidade do luto de amigos e da família da artista, com a câmera da televisão cobrindo integralmente o velório da cantora e julgando os colegas dela em lamentos. Em contrapartida, também houveram homenagens sensíveis que reconstruíram a carreira de Marília e ressaltaram a importância da cantora que trouxe uma perspectiva feminina para um gênero musical tão predominantemente masculino quanto o sertanejo.

Marília Mendonça em um dos seus últimos shows. Foto: Instagram oficial da cantora.

Sendo uma mulher no sertanejo, Marília lidou com muito preconceito e machismo, algo que a acompanhou até a morte. Apesar da grande maioria das matérias serem elogiosas à carreira da cantora, não faltaram comentários sobre o peso dela. Adjetivos como “gordinha” estavam presentes em perfis e obituários, e comentários na televisão sobre como ela havia perdido peso e estava com um shape lindo” também.

Como a própria Marília já falou, o que ela construiu não é baseado nisso, não é baseado no seu peso. Marília não deve ser lembrada “apesar de” alguma coisa: apesar do número que aparece na balança, apesar de ter emagrecido, apesar dos preconceitos que sofreu. Ela deve ser lembrada exatamente pelo que construiu. E isso não foi pouca coisa.

Nasce uma estrelinha

Marília Dias Mendonça nasceu em 22 de julho de 1995 na cidade de Cristianópolis, localizada no interior do Goiás, mas cresceu na capital do estado, Goiânia. Ela era filha de Ruth Dias e Mário Mendonça e tinha ao todo oito irmãos. A cantora foi criada pela mãe e teve uma infância simples junto com o irmão caçula João Gustavo.

“A carreira da Marília Mendonça não aconteceu de repente, ela foi construída através de histórias, desde os seus 12 anos de idade quando começou a cantar na igreja frequentada por ela e sua família”, conta Hellen Cintra Pires, administradora da conta do Instagram “@mmm_patroas”, que é dedicada as cantoras Marília Mendonça e Maiara e Maraísa. Nesse mesmo período, a goiana compôs suas primeiras músicas. Seu avô percebeu suas habilidades e pagou aulas de violão para ela.

A família da Marília era proprietária do bar “Cantinho da Viola”, no qual ela se apresentava para os clientes. Nesse período, ela costumava cantar pop rock e não tinha aspirações para ingressar na cena sertaneja, a qual é muito forte em Goiás. Em uma de suas apresentações no estabelecimento, um olheiro local a ouviu cantar e fez um convite para que ela tocasse sertanejo em algumas casas noturnas da cidade.

Os início da carreira profissional

Antes de lançar uma carreira profissional como cantora, Marília deu seus primeiros passos na indústria fonográfica como compositora. Aos 12 anos, ela escreveu sua primeira música, “Minha Herança”, em parceria com a dupla sertaneja João Neto e Frederico. A partir disso, a pequena prodígio trabalhou compondo vários hits para cantores e duplas do gênero, como “Muito Gelo, Pouco Whisky”, cantada por Wesley Safadão; “É Com Ela Que Eu Estou”, para Cristiano Araújo; “Calma”, de Jorge e Mateus; e “Ser Humano ou um Anjo”, lançada por Matheus e Kauan.

Ela também escreveu as canções “Até Você Voltar”, “Cuida Bem Dela” e “Flor e o Beija-Flor” para a dupla Henrique e Juliano, que eram amigos próximos de Marília. Além desses, ela colaborou com artistas como Lucas Lucco, Joelma, Maiara e Maraisa, Fred e Gustavo e César Menotti e Fabiano.

Foi em 2015 que Marília iniciou oficialmente sua carreira como cantora ao lançar ao lado da dupla Henrique e Juliano as músicas “Flor e o Beija-Flor” e “Impasse”, ambas compostas pela goiana. Hellen lembra que ela e sua família se tornaram fãs da goiana por causa da canção “Flor e o Beija-Flor”.

No ano seguinte, aos 20 anos, ela gravou seu álbum de estreia intitulado “Marília Mendonça: Ao Vivo”, o qual era composto por canções como “Sentimento Louco” e “Infiel”, que ficaram entre as mais tocadas daquele ano no Brasil e resultaram no reconhecimento nacional para Marília. A canção “Infiel” ocupou o posto de 5ª música mais tocada pelas rádios brasileiras em 2016.

O sucesso nacional

Em 6 de março de 2017, o DVD “Realidade”, gravado em Manaus, foi lançado. A Som Livre, gravadora da cantora, já havia disponibilizado o EP “Agora É Que São Elas”, com quatro músicas como prévia para o álbum. O “Realidade” tinha como single “Eu Sei de Cor”, o qual ficou em primeiro lugar por seis semanas consecutivas no ranking Brasil Hot 100 Airplay da Billboard em 2016.

O disco também contou com as músicas “De Quem É A Culpa?”, “Traição Não Tem Perdão”, “Amante Não Tem Lar”, entre outras. Esse trabalho garantiu a Marília sua primeira indicação ao Grammy Latino, ela concorreu como Melhor Álbum de Música Sertaneja em 2017. Nesse mesmo ano, ela se tornou a artista brasileira mais reproduzida no YouTube e a 13ª no ranking global.

Nesse período de sucesso estrondoso por todo o país, Marília ganhou o apelido carinhoso do público de “Musa da sofrência”, devido ao tom dramático de suas composições, as quais abordavam sobre traição, amor, relacionamentos e o sofrimento causado pelo fim deles. “Ela nos impactou com sua coragem e firmeza”, fala Hellen. O fato das suas músicas tratarem sobre esses temas por meio das perspectivas das mulheres e incentivando o empoderamento feminino fez da cantora uma das pioneiras e principais representantes do feminejo, que tornou-se uma das ramificações de maior sucesso do gênero sertanejo. “Marília é a representatividade em pessoa. Força,  garra, constância e persistência de uma mulher determinada”, afirma a fã.

Junto com Marília, o feminejo também tinha como representantes de destaque a dupla de irmãs Maiara & Maraisa. As três eram amigas de longa data e já tinham trabalhado juntas compondo canções para outros artistas, por isso, em 2018, elas resolveram lançar um álbum em conjunto, o “Agora É Que São Elas 2”. No mesmo ano, Marília também lançou a coletânea “Perfil (Ao Vivo)”, a qual reuniu seus principais hits até aquele momento.

A realização de um sonho em “Todos os Cantos”

Marília Mendonça tinha um sonho ambicioso em sua carreira: a realização de uma turnê que passasse por todas as capitais do Brasil com shows gratuitos. O intuito era agradecer o carinho dos fãs, que muitas vezes não podiam ir aos shows pagos, e aproximar a cantora das pessoas.

Em 2019, ela realizou esse sonho com a turnê “Todos os Cantos”, que para muitos fãs, como Hellen, é um dos momentos mais emblemáticos da carreira da sertaneja. No projeto, a goiana chegava de surpresa nas 27 capitais brasileiras para fazer um show gratuito. “Ela e toda a equipe saiam por todo o Brasil, panfletando, divulgando e convidando para seu próprio show, que era realizado em praças locais daquela determinada cidade e ali iam multidões de pessoas”, comenta.

Esse projeto resultou no documentário de mesmo nome feito pela plataforma de streaming Globoplay. A obra mostra em 4 episódios os bastidores da turnê, a divulgação dos shows, as apresentações e a relação da cantora com sua equipe.

O conteúdo da turnê também gerou o álbum e DVD “Todos os Cantos”, o qual contava com vídeos das apresentações da turnê e músicas como “Todo Mundo Vai Sofrer”, “Supera”, “Ciumeira” e “Bem Pior Que Eu”. Esse trabalho deu a Marília o prêmio Melhor Álbum de Música Sertaneja no Grammy Latino 2019.

Durante o projeto, a vida pessoal de Marília — sobre a qual ela sempre foi bem discreta — também passava por uma fase com várias conquistas e realizações. Em maio de 2019, a Rainha da Sofrência anunciou seu namoro com o cantor e compositor Murilo Huff e, em dezembro do mesmo ano, nasceu o filho do casal, o pequeno Léo Dias Mendonça Huff, que atualmente tem dois anos. O casal viveu algumas idas e vindas no relacionamento e se separou definitivamente em setembro de 2021, mas mantiveram uma relação de amizade e carinho.

As lives e os últimos projetos

Por causa da pandemia de covid-19, a partir de março de 2020, os shows e espetáculos foram proibidos, com o intuito de manter o isolamento social. Para entreter as pessoas, incentivar o isolamento e angariar fundos para os indivíduos impactados financeiramente pela pandemia, vários cantores decidiram realizar lives pelo YouTube e pelo Instagram cantando seus grandes sucessos.

Os primeiros artistas que optaram por essa modalidade foram do gênero sertanejo. Entre eles, Marília realizou muitas lives e entrou para história do YouTube com sua primeira live, que aconteceu no dia 8 de abril de 2021. Na ocasião, o show online de três horas da cantora foi acompanhado simultaneamente por 3,31 milhões de usuários do YouTube, recebeu aproximadamente 3 milhões de likes e teve ao todo mais de 55 milhões de visualizações. Com estes números a compositora conquistou a primeira posição do ranking das lives mais assistidas de 2020.

O evento intitulado “Live Local Marília Mendonça” foi realizado na casa da compositora e teve as melodias das músicas tocadas por playback. O objetivo da transmissão era incentivar doações para o programa Mesa Brasil, do Sesc, uma rede de bancos de alimentos para o combate à fome e ao desperdício. Na live, também houve a divulgação da plataforma CompreLocal, com o intuito de auxiliar os pequenos comerciantes.

Ao decorrer da quarenta, a cantora transmitiu simultaneamente outras apresentações. Uma das lives foi a “#TodosOsCantosDeCasa”, que garantiu o oitavo lugar no ranking das lives mais vistas de 2020, com 2,21 de visualizações simultâneas e 25 milhões ao todo.

Em 2020, a cantora também retomou a parceria com Maiara e Maraisa para lançar o álbum de estúdio “Patroas”, que foi composto por canções inéditas e regravações de sucessos de outros artistas. O trabalho em conjunto gerou um indicação ao Grammy Latino 2020 na categoria Melhor Álbum de Música Sertaneja para as musicistas. 

A amizade entre as três continuou a render frutos musicais e, em 2021, elas gravaram o álbum “Patroas 35%” – o último trabalho lançado em vida por Marília – o qual conta com nove faixas, sendo seis inéditas e exclusivas.

No começo do mês de outubro, as cantoras fizeram uma coletiva de imprensa para anunciar uma turnê para 2022 com o mesmo nome do disco. Como a própria Marília explicou, os 35% do título significam que a turnê e o álbum contém apenas 35% dos planos de execução do projeto. Em entrevista à revista Quem, a dupla Maiara e Maraisa confirmou que irão dar seguimento a turnê “Patroas 35%” como homenagem a Marília.

Mesmo “Patroas 35%” tendo sido o último trabalho lançado em vida pela Rainha da Sofrência, ela deixou, de acordo com o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), cadastradas 324 músicas e 391 gravações solo e com parceiros. Entre as canções, estão colaborações com Dulce María, Lucas Lucco, Zezé Di Camargo e Ludmilla.

O legado de Marília Mendonça

Marília Mendonça, junto com Maiara e Maraisa, Simone e Simaria e Naiara Azevedo, lançou luz sobre o feminejo e levou esse ritmo para todos os cantos do Brasil. Elas foram pioneiras em romper as barreiras de um gênero musical composto quase só por homens, com poucas exceções ao longo da história, como Irmãs Galvão, Roberta Miranda e Paula Fernandes, e por inspirar toda uma nova geração de cantoras sertanejas, como Yasmin Santos; Luana Prado; Júlia e Rafaela; Mariana, dupla com Mateus; e Luiza, da dupla com Maurílio.

Essas musicistas não apenas abriram caminhos para mais artistas do gênero feminino no sertanejo. Elas também foram responsáveis por mudar toda a representação das mulheres nas canções e tornar essas músicas mais próximas de milhares de brasileiras. Antes delas, as músicas sertanejas, na maioria das vezes, apenas contavam as histórias na visão dos homens e colocavam as mulheres simplesmente como o objeto do amor do eu-lírico ou a responsável pelo sofrimento do personagem.

Já a “Marília Mendonça abraçou a mulher de uma forma geral, transmitiu sentimentos através de suas canções e letras marcantes e assertivas. Ela falava diretamente com os sentimentos e experiências já vividas por seus fãs. Passou a verdade e a realidade da vida do ser humano de forma direta, clara e com muito respeito aos sentimentos abordados”, expõe a administradora do fã clube. Assim, com o feminejo, as mulheres viraram as protagonistas das músicas e deixaram de ser uma persona plana Elas se tornam paralelos das mulheres reais, que também, como nas canções, amam, sofrem, são traídas e são amantes, festejam e bebem como os homens, procuram pelo amor e vivem desilusões e conquistas.

Foto: Instagram oficial da cantora.

Além disso, Marília também ajudou na transformação da musicalidade dentro do sertanejo ao se aproximar de outros gêneros da indústria fonográfica, por meio de parcerias com diversos artistas. Isso propiciou que a música sertaneja chegasse e agradasse a mais pessoas, que antes não ouviam esse gênero, assim, aumentou a popularidade do sertanejo. Durante sua carreira, a Rainha da Sofrência colaborou com o pop, o funk, o pagode, o axé, o forró, o pisante, a mpb e o pop latin, e com artistas como Joelma, Ivete Sangalo, Anitta, Ludmilla, Léo Santana, Péricles, Xamã, Gal Costa, Luisa Sonza e Dulce María.

Marília Mendonça, com seu timbre poderoso e sua capacidade de tornar sentimentos e vivências genuínas em letras de música, não só transformou a cena sertaneja e a indústria fonográfica no geral, como também marcou para sempre com seu talento o povo brasileiro. “A Marília Mendonça não foi, ela é e sempre será a mentora de uma linda história de coragem e persistência. Que mesmo direta ou indiretamente impactou multidões e deu voz a muita coisa que era vedada. Será lembrada eternamente, pois os que ficaram vão carregar e pôr em prática tudo o que deixou para nós, como exemplo, a persistência e coragem!”, finaliza Hellen.