Por que a USP muda de cara, mas o corpo não acompanha?

O público da USP não é mais o mesmo e precisa de mudanças que reduzam as barreiras que nasceram com o projeto ultra rodoviarista da Cuaso

por Alessandra Barrozo e Manuel Savoldi

Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Um Chevrolet Impala preto, um par de All Star, um lenço vermelho e nenhum rosto. Na placa do carro: racionais. Para quem não reconheceu de cara, os elementos estampam o álbum que ganharia o Prêmio Hútuz de melhor do ano em 2002. “Nada como um dia após o outro dia” (Spotify) tem 21 faixas, distribuídas em 2 CDs. São 1 hora e 50 minutos de músicas.

Autor de metade delas, Mano Brown foi, antes de rapper, Pedro Paulo Soares Pereira, morador do Capão Redondo, extremo sul de São Paulo. Se estudasse no campus Butantã da USP, poderia se ouvir cantar cada uma das suas faixas mais de uma vez durante o trajeto de algum dia normal.

“Nada como um dia após o outro dia” ganhou mais que prêmios. Ganhou também uma tatuagem no braço de Julio Madella, morador do Grajaú, extremo sul de São Paulo. Para estudar onde estuda, no campus Butantã da USP, pode ouvir o disco inteiro – do “bença, mãe” ao “é desse jeito!” – durante o trajeto de algum dia mais azarado.

Um pedaço da jornada é compartilhado com muitos: atrás da estação do metrô Butantã, no ponto dos ônibus que penetram a USP, todos os outros bairros e cidades da Grande São Paulo se encontram. 

De Isa, que travava uma luta diária contra o tempo e a distância entre a USP e Mogi das Cruzes, mais de 80 quilômetros, a Raphael, que mora a 20 minutos daqui. Todos disputando qualquer espacinho que seja do 8012. 
São três as linhas que saem dali e percorrem os institutos e são todas impotentes em atender a demanda de estudantes que precisam acessar a universidade. Esses e Bruno, que leva 15 minutos para chegar, de carro, dividem um campus construído pensando em um e não em outro. Deixa no ar a impressão de que a Cidade Universitária só é, assim como nos anos 1960, receptiva e agradável mesmo a Pedros e Julios se dirigem Chevrolets. Será?

Para quem nasceu a USP?

A criação da Universidade em 1934 não foi uma coincidência, dois anos antes, em 1932, as tropas paulistas haviam sido derrotadas pelas legalistas, pondo fim à Revolução Constitucionalista que já se arrastava por quase três meses. Concluindo que não haveria muita evolução caso optassem novamente pela saída bélica, a oligarquia paulista envereda por outro caminho. Já que não é possível vencê-los pelas armas, vença-os pela ciência. Estava sendo criada a Universidade de São Paulo, que terá um lema muito condizente com seus objetivos: “scientia vinces“, ou “com a ciência vencerás”, em latim. 

Para estabelecer-se como uma universidade, era necessário concentrar as faculdades já existentes na cidade em um só lugar. Para isso, o interventor Armando Salles de Oliveira — que mais tarde seria homenageado no nome do campus —, com a ajuda de uma comissão, escolheu as terras da longínqua Fazenda Butantã, que já abrigava um instituto de mesmo nome às margens do Rio Pinheiros, ainda sinuoso. Nasciam do mesmo parto a Cidade Universitária Armando Salles de Oliveira (Cuaso) e a primeira barreira para acessá-la:  a distância. 

Como quase tudo no país, o projeto demorou para sair do papel, o que só aconteceu na segunda metade dos anos 1950, compartilhando a gestação com Brasília. Foram tempos em que as ideias modernistas no campo da arquitetura e do urbanismo avançavam. Não é à toa a quantidade de semelhanças que a Cuaso compartilha com a capital federal, erguida do zero na mesma década de 50. As grandes avenidas, áreas verdes, estacionamentos a céu aberto, edifícios imponentes e afastados uns dos outros, imensas rotatórias. E muito asfalto.

Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Tudo isso junto é retrato de um Brasil que começava a escolher o transporte que se tornaria sua prioridade dali pra frente. É o que aponta Raquel Rolnik, atual prefeita do campus USP da Capital, para quem o projeto da Cuaso foi propositadamente pensado para as quatro rodas. “Estamos falando da ditadura militar e do começo da implementação do modelo rodoviarista no Brasil, que está diretamente relacionado com a indústria automobilística nos anos 50. E estamos falando de um campus isolado, com baixíssima densidade, 100% dependente do carro”, lembra Rolnik.

Mais que o espaço físico, a USP da metade do século XX era reflexo do modelo social brasileiro, ainda mais desigual. Afastada do centro da cidade, sem variedade de meios de transporte coletivo eficientes para alcançá-la, porque o público era também pouco diverso. Era a elite paulistana que frequentava essas avenidas, rotatórias e estacionamentos.

O resultado foi um tiro que saiu pela culatra. A universidade tão bonita em fotos, vista de cima ou nas plantas de projetos, se torna extremamente desafiadora quando é necessário transitar por ela da maneira mais simples possível, a pé. Nesses momentos fica claro: a Cuaso não foi projetada para a escala humana. 

Esse projeto urbanístico criou uma cultura contra a qual ainda lutamos até hoje, 70 anos depois: a das barreiras. Para o geógrafo e professor Jacques Lévy, “a decisão pelo automóvel tende a introduzir a lógica do afastamento no coração de seu contrário, que é a cidade”. Ao optar pelos carros, a USP de 1960 deixou de herança afastamentos e barreiras difíceis de transpor, mesmo para a USP de 2022.

À Universidade, os carros!

As características da Cuaso, vantajosas aos carros, se transformam em dificuldades quando observadas pela ótica dos pedestres. Quase tudo na Universidade é longe. Do P1 até a Reitoria — que fica em posição estratégica no centro do campus — são 21 minutos a pé (Google Maps). Agora, se seu objetivo é alcançar o Hospital Universitário, o tempo quase dobra, 41 minutos.

A caminhada, que parece agradável diante da abundância de verde no cenário da Cuaso, tão raro em SP, pode se tornar desgastante em um dia mais quente e perigosa quando percorrida durante a noite. 

Um campus permeado por espaços vazios — sejam os reservados para futuras instalações acadêmicas, os canteiros das avenidas, o meio das rotatórias ou as próprias praças —, germina da carência de infraestrutura urbana que o transforme em lugar de encontro, de contato. É a ausência de oferta de comércio e serviços, de pessoas ao ar livre, fora dos prédios, que nos faz sentir falta de um ambiente mais seguro e agradável, mais humano.

Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A barreira do vazio aparece também na falta de integração entre os edifícios, a rua e os outros espaços da Cuaso, justo onde as trocas deveriam ser protagonistas. As construções são afastadas umas das outras, sem conversar entre si, espremidas entre estacionamentos e longe das ruas, criando mais vazio e insegurança. As calçadas, na maioria das vezes, se constituem de uma corda bamba entre carros em movimento e carros estacionados. Estão, quase sempre, também esvaziadas.

“Percorrendo os vários projetos que orientaram a construção da Cidade Universitária, e também aqueles que não lograram ser construídos, pode-se perguntar em que medida foi atingido o objetivo de constituir uma verdadeira universidade e não apenas um agregado de faculdades isoladas.”

— Fernanda Fernandes; Arquiteta e professora da FAU-USP

O próprio Plano Diretor da Cidade Universitária propaga esse tipo de abordagem urbana. O último, publicado em 2013, em seu capítulo III, artigo 12, diz : “Deverão ser respeitados os seguintes recuos mínimos: a) Em relação às vias principais de tráfego de veículos, deverá ser considerado o recuo mínimo de 15 metros até o edifício, a partir da guia; b) Em relação às vias locais, deverá ser considerado o recuo mínimo de 10 metros até o edifício, a partir da guia; c) Em relação aos estacionamentos a céu aberto, deverá ser considerado o recuo mínimo de 5 metros até o edifício, a partir da guia”. 

Os 15 metros necessários para as vias principais equivalem a quase cinco faixas de rolamento de uma avenida, muito longe para garantir que existam olhos nos edifícios zelando pelos que transitam do lado de fora. 

Os vazios que escondem a vida humana aos olhos de quem passa, mesmo em um campus com mais 90 mil discentes, se inundam de medo quando o sol se põe. Nas sombras, um ciclo: o medo da violência constrói barreiras — incorporadas, por exemplo, na figura dos muros —, que gera vazios, que alimentam o medo. Por isso é tão difícil se imaginar cruzando tranquilamente a praça do relógio às 23h, horário que encerra as aulas do noturno.

Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Não bastasse essa, vem outra preocupação: há uma constante guerra sendo travada no campus. “Como em todo território do mundo”, explica Rolnik, “o espaço da Cuaso não é isento de disputas”. A que acontece todos os dias entre pedestres, ciclistas e veículos confirma isso. As muitas rotatórias, gigantes como as avenidas, propiciam entroncamentos sem a necessidade de faróis, com o fluxo de carros constante. Ótimas para os motoristas, por vezes confusas para quem pedala, um pesadelo para os pedestres. O impasse entre pegar um caminho mais longo, seguro, ou outro menor e mais arriscado aparece com frequência a quem não dirige.

Nesse contexto, fica clara a importância da valorização de outros meios de transporte que possam cobrir as distâncias dentro do campus. São os circulares — tendo como ponto essencial a gratuidade — e as bicicletas que cumprem esse papel. Temos infraestrutura adequada para ambos?

Para a alegria dos amantes de pedais, as magrelas, por muito tempo negligenciadas, vêm ganhando espaço através dos projetos para sua disseminação, como a instalação de estações de bicicletas compartilhadas em locais estratégicos e o aumento do número de ciclovias, bem demarcadas e separadas do fluxo de carros. Os quase 30 quilômetros de novas ciclofaixas por aqui dão um ar de esperança, e as novas cores que colorem as pistas apontam na direção de uma USP que está mudando, reflete um novo público que exige mudanças que extrapolam as salas de aula e que precisa sentir que aquelas avenidas também o pertencem. Sem contar a delícia que é sentir o vento no rosto ao descer a Avenida Lineu Prestes pedalando — com moderação!

Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Já os circulares não tiveram a mesma sorte. O retorno às aulas presenciais evidenciou como sua oferta é muito menor que o necessário para suprir a demanda de estudantes circulando pela USP, problema que já era notado antes do esvaziamento do campus pela quarentena e que se faz frequente também em outras universidades do país

A situação se torna mais grave quando consideramos que ainda existe uma pandemia em curso e que muitos espaços tiveram sua capacidade reduzida para diminuir o risco de contaminação. Ironia ou negligência, a mesma regra não vale para esses ônibus — 8012, 8022 e 8032 —, que são poucos, em quantidade de linhas e de veículos.

Trinta minutos de espera não é exagero. Basta conferir a avenida Vital Brasil, no Butantã, para concordar que esse tempo é coerente com as filas para embarcar em algum circular, superlativas como tudo na USP. E não poderia ser diferente. 

Rolnik: “Os trilhos são os modais que têm mais capacidade de carregamento de pessoas por hora e sentido. Você chega com modais de enorme capacidade, CPTM e metrô, para entrar em um ônibus, que não tem essa capacidade, por melhor que seja sua operação”. Sabendo que estamos longe da “melhor operação”, a notícia indica, para quem vê o copo meio cheio, que a situação não é caso perdido.

Contudo, se mesmo a otimização dos circulares deixaria a desejar, é inevitável trazer à tona aquele que é assunto mistério na nossa história: e o metrô da Cuaso, hein?

Por que não trilhos?

Pois é, para passar pelo perrengue dos circulares, cada vez mais estudantes precisam passar, antes, pelo dos transportes coletivos da Grande São Paulo para chegar até o terminal Butantã. Os meios mais clássicos continuam sendo os ônibus, provenientes de todos os cantos da metrópole paulista e o metrô, opção mais interessante para quem vem de longe. Em 2011, foi inaugurada, a muitos palmos do chão, a estação Butantã da Linha 4-Amarela, situada a 1 km para fora do P1. Por que não para dentro?

A relação dos trilhos com a cidade universitária passa por uma demanda antiga da comunidade uspiana, com negociações que remontam à década de 1990. Os motivos para o projeto que incluiria a USP no mapa do metrô não ter seguido adiante são muitos e carregam um tanto de perguntas em aberto.

A falta de documentos que esclareçam o que impediu a linha amarela de cortar a USP não só abre espaço para as mais diversas narrativas sobre o caso, deixa também um desagrado: um assunto tão importante deixado na escuridão, fora das prioridades, é absurdo. E quanto mais abrangente e diversa a USP fica, mais a mágoa ecoa.

Imagina-se que uma divisão na própria comunidade quanto ao tema, a dificuldade de restringir uma estação às regras do campus — como seu fechamento aos domingos —, a necessidade de uma mudança de traçado na linha podem ter soterrado a ideia. Mas, mesmo que o projeto tivesse ido para frente, ele não seria suficiente para superar as barreiras impostas pelo plano inicial, rodoviarista, e que teremos, sempre, que contornar. 

Mesmo com essa chaga pesando na balança, a Cuaso possui uma boa oferta de transportes sobre trilhos, com três estações nas suas imediações. Além do metrô Butantã, duas estações da linha 9-Esmeralda, Villa Lobos-Jaguaré e Cidade Universitária. Embora não haja o serviço de ônibus para essas duas outras estações, no último Plano Diretor foram colocados planos para a construção de uma passarela ligando a Praça do Relógio à uma nova estação da linha, conectando o campus diretamente a um meio de transporte sobre trilhos. O projeto chegou a ser lançado pelo então governador Geraldo Alckmin, mas como muitos planos para a USP, até hoje não seguiu adiante.

Plano Diretor CUASO 2013. Foto: Superintendência do Espaço Físico/USP

De volta à USP

As ruas da Cidade Universitária, as salas de cada instituto, os bandejões, os muitos verdes da Praça do Relógio são, para duas gerações de ingressantes da USP, um sonho suprimido pela Covid-19. Depois de dois anos distantes, a conexão precisava mesmo extrapolar os limites das telas. Mesmo quem nem se dava conta, agora tem certeza de que a vivência universitária, assim, na pele, é fundamental para a construção de um lugar onde a troca é protagonista. Afinal o que é uma cidade, se não lugar para reduzir as distâncias e expandir os contatos?

O corpo discente da Universidade de São Paulo que voltou da pandemia tem a cara de uma diversidade acumulada ao longo dos anos, tem menos grana para vir de carro, tem mais endereços, muitos deles mais distantes. E é ainda mais sedento por viver a USP por completo.

Mas, se a aula acaba às 23h e o metrô fecha meia noite, ir a pé até lá é inviável e o circular demora a passar, que tempo sobra para trocar ideia ao final do dia, contar uma fofoca, estreitar os laços? Se é preciso acordar uma hora mais cedo, contando no tempo do trajeto as longas filas para o ônibus, como aproveitar bem todo o dia? Isso para não citar o que se perde quando não se propicia visitas a outros institutos, mais tempo nas bibliotecas, no engajamento em pesquisa e extensão. Mais universidade.

É injusto que a Cuaso limite a experiência, tão desejada por tanto tempo, por não ser capaz de reduzir as barreiras que vêm desde seus primeiros mapas.

Quem sabe a próxima geração vivencie uma USP movida a mais pernas e menos combustíveis. Esperamos que sim. A nova USP precisa transbordar de humanidade.