Qual o futuro da prainha da ECA?

Restrições de acesso e falta de infraestrutura dão contorno a uma prainha esvaziada e instaura um polêmico debate que separa docentes e alunos sobre o futuro deste espaço de convivência estudantil

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por Jorge Fofano Junior

Foto: Giovanna Preto/JC

Após dois anos do domínio do ensino à distância, o retorno à presencialidade descongelou a realidade das interações cara-a-cara e tem permitido a reconexão de alunos com espaços de convivência da Universidade de São Paulo. A prainha, vivência da Escola de Comunicações e Artes (ECA) é um desses lugares imortalizados na memória de dezenas de gerações de alunos e professores que por lá passaram. Mas, para parte dos estudantes atuais da ECA que frequentavam o espaço antes da pandemia, a prainha perdeu a vitalidade que tinha.

Visitas à área revelam uma paisagem marcada por bancos vazios e um extenso gramado interrompido por grades que converge com o relato dos estudantes mais antigos. Um pico de movimento, instigado em parte pela persistente superlotação dos restaurantes universitários, ocorre na meia hora que antecede o início das aulas do noturno, quando alunos e professores aparecem nas imediações da prainha para acessar a Dona Leoa, cantina localizada no interior da vivência estudantil. “Durante o almoço, o movimento também caiu muito”, nota Monyca Feola, dona do negócio.

Ao anoitecer, a sensação de esvaziamento é potencializada pela falta de iluminação dos postes centrais. Indagada, a professora Brasilina Passarelli, atual diretora da ECA, explica ao Jornal do Campus que “a iluminação do Prédio Central [que fornece iluminação lateral à prainha] foi melhorada, inclusive na parte do espaço da  prainha”, mas “em outros pontos, a questão é de responsabilidade da Prefeitura do Campus e está sendo contemplada em um conjunto de ações a serem negociadas com entidades estudantis”, complementa. 

O vazio que os estudantes sentem também vem da ausência de personagens que compunham a rotina do tempo pré-pandêmico. É o caso do Seu Fernando, responsável pela gráfica que ficava em uma das salas do Prédio Central e cujo acesso se dava pela prainha. O vencimento do contrato licitatório que regulamentava a permanência da prestadora de serviço no espaço precipitou a saída de Fernando e de dois assistentes para um endereço no bairro da Mooca, zona leste da capital paulista. Hoje, a sala de pouco mais de 10mvizinha à biblioteca se encontra apagada.  

Uma história parecida com a de Fernando, ainda que fora da prainha, é a do casal Vando e Karina, celebrados pelo bole de pote da cantina do Departamento de Artes Cênicas (CAC). Os comerciantes precisaram sair do espaço da cantina quando o contrato terminou e hoje continuam as atividades em um trailer próximo ao Hospital Universitário (HU). Por telefone, Vando comenta que se candidataria a um novo pregão para permanecer no Departamento, mas este não foi realizado. Segundo o comerciante, a ECA lhe informou que o espaço deverá passar por uma reforma cuja conclusão está prevista para daqui três anos e, por isso, o uso da cantina do CAC precisaria ser suspenso. “É um tempo muito longo. Fica difícil dizer que eu voltarei”, pontuou Vando ao também relatar que o movimento atual de clientes perto do HU não se compara ao que ele possuía quando estava à frente da cantina do CAC. Ele e sua esposa tentam se reestruturar financeiramente, após um 2021 difícil para o casal — Karina ficou desempregada e Vando passou dias internado em uma UTI após ter contraído covid-19. 

O retrospecto da “diáspora” de comerciantes da prainha para outros pontos da universidade e até mesmo fora dela teve início na instalação das grades, um evento considerado traumático para a comunidade ecana, que está profundamente vinculado a duas questões atuais sobre o local: as restrições de acesso e o indicativo de suspensão das festas no espaço.

O “dossiê da prainha”

No último 5 de maio, membros da atual gestão do Centro Acadêmico Lupe Cotrim (CALC) e alunos da ECA conduziram uma paralisação com atividades e debates que atravessaram o dia. Logo cedo, cerca de 40 alunos se concentraram em frente ao Prédio Central da Escola e seguiram pelo corredor administrativo da instalação entoando gritos de protesto e empunhando cartazes com os dizeres “a prainha é nossa”, “vivência também é permanência”, “a QiB (Quinta & Breja, tradicional evento do alunado na unidade) continua além das grades”.

Alunos entoam palavras de ordem no corredor administrativo do Prédio Central. Foto: Beatriz Herminio/JC

Como indicado pelas postagens do CALC nas redes sociais, a paralisação do último dia 5 ocorreu na esteira da última reunião do Conselho Técnico-Administrativo (CTA) da ECA, datada de 13 de abril de 2022. Naquele dia, o CTA ratificou a proibição de acesso à prainha após às 21h30 — imposição que, por sua vez, já havia sido aprovada no início do ano letivo. Segundo relatos de Filipe Primo, estudante do 3o ano de Publicidade e Propaganda, membro do CALC e representante discente no Conselho, houve na reunião a leitura de um dossiê das festas na prainha.

O relatório mencionado pelo representante discente, e ao qual o Jornal do Campus teve acesso, foi produzido por um Grupo de Trabalho (GT) designado ainda em setembro de 2019  pela Congregação da Escola. No documento, consta uma análise dos últimos quatro anos de eventos estudantis na prainha, com foco no biênio 2018 e 2019, através de registros de entradas e saídas sob tutela do Chefe de Vigilância do Prédio Central. 

Trecho que acusa as festas de serem “celebrações da privatização selvagem” repercutiram nas redes sociais. Arte: Jorge Fofano/Reprodução: Relatório Final do GT da prainha

Ao longo das 11 páginas, o GT traz um histórico de casos de agressões, assédios e ataques homofóbicos durante as festas no espaço, além de menção direta à morte de Benício Leão Filho, ex-aluno da USP morto durante uma QiB; reitera preocupações com o número excessivo de pessoas naqueles eventos — vários dos quais, segundo o levantamento, superaram a marca de 2000 pessoas —, indica ausência de condições seguras para os frequentadores, crítica a incompatibilidade do horário das festas com as atividades acadêmicas e reivindica que pessoas físicas sejam colocadas como responsáveis pela organização dos eventos.

Equipe contratada de segurança e bombeiros circulando nas imediações da prainha, na QiB do dia 5 de maio. Foto: Jorge Fofano/JC

Ausentes do documento, também se apresentou, ao curso da reunião, imagens de câmeras de segurança instaladas na ECA e na Reitoria com foco em estudantes consumindo bebidas alcóolicas. Segundo comunicado do CALC, as imagens teriam sido gravadas durante a realização das duas primeiras QiBs de 2022, que contaram novamente com grandes públicos.

Questionado se a ausência de segurança e a existência de danos ao patrimônio da Escola estão ocorrendo, o representante discente diz, primeiro, não fazer sentido que os alunos causem a degradação do ambiente onde estudam; já sobre a segurança, Primo esclarece que: “[nós do CALC] contratamos seguranças e bombeiros. Sempre fazemos uma estimativa do número de pessoas que vêm aos eventos e passamos esses dados aos seguranças e aos paramédicos. A segurança das pessoas [que frequentam as festas] é uma prioridade nossa”.  Outra medida de segurança há muito empregada pelos alunos consiste nas Comissões Anti-Opressão (CAO), que fazem o atendimento de vítimas de assédios verbais, morais e físicos.

Já sobre a parte do documento que alega falta de transparência sobre os recursos levantados nas festas, Primo enfatiza que o CALC divulga, a cada seis meses, um balanço financeiro dos ganhos e gastos desempenhados. 

Para além das finalidades culturais, sociais e políticas, membros das gestões de entidades estudantis defendem que as festas são importantes formas autônomas de financiar as atividades desenvolvidas por centros acadêmicos, atléticas, times e baterias universitárias. Da instauração de micro-ondas na vivência para estudantes que levam marmitas de casa à inscrição dos times nos campeonatos desportivos universitários, diversos projetos que tratam da permanência estudantil na universidade dependem de recursos em caixa.  

Face a esta necessidade, a diretora Brasilina Passarelli diz que formas de financiamento não associadas à festas também são pautas do Grupo de Trabalho que lida com a permissão de eventos na prainha. Ela complementa: “por parte da Direção, pedidos pontuais das entidades são atendidos sempre que possível: um exemplo, é a compra de 14 mil reais em materiais esportivos para a ECAtlética – já em andamento”. 

Falas polêmicas e descrença estudantil 

Em outro momento tenso do encontro de 13 de abril, Primo alega ter sido ofendido pessoalmente pelo professor Luiz Fernando Ramos, do Departamento de Artes Cênicas (CAC), de “agir milicianamente”. O ataque teria ocorrido após uma fala do representante discente em defesa do fim das restrições de acesso à vivência. “Eles consideraram como uma ameaça quando eu falei que nós [os alunos] iríamos nos organizar politicamente, caso a decisão de cercear a prainha fosse mantida. Organização política é intimidação? Isso tem nome: é uma tentativa de cerceamento político dos estudantes”, argumenta.

Perguntado sobre o incidente, o docente Luiz Fernando classificou como “imprecisa” a alegação de ofensa. Em seu comentário ao Jornal do Campus, Luiz rebate: “O que aconteceu foi eu ter me chocado com a reação do representante do CALC não expressando nenhuma empatia para com aqueles que sofrem as violências [expostas pelo relatório do GT] e, numa postura quase cínica, ameaçar os conselheiros com consequências terríveis se não se suspendesse a decisão de fechar o prédio às 21h30”.

Na conclusão do comentário, Luiz Fernando diagnostica a situação presente na ECA como um “problema de convivência de duas posturas justificadas”, quais sejam a do direito dos alunos a convivência festiva e a da Escola com suas atividades de ensino, e que “pressupõem uma solução compartilhada em que os dois lados sentem para conversar com boa vontade e sem rigidez nas posições”.

A falta de canais de diálogo com a professora Brasilina para tratar das questões envolvendo a prainha traz incômodo ao CALC. Desde a volta às aulas em março, o Centro Acadêmico da ECA diz ter procurado a diretoria em algumas ocasiões, mas só obteve sucesso em contatar as assessoras da docente. Na opinião de Brasilina, a diretoria “se mantém atenta e ativa às demandas que chegam até nós”, mas ressalta que o cargo de diretora impõe dificuldades de agenda e conciliação de diferentes frentes de trabalho. Por fim, ela salienta que muitas decisões envolvendo a gestão do espaço são colegiadas, não monocráticas e, portanto, não dependem só de sua vontade.

A fala da diretora esbarra em uma descrença histórica da representação discente, que entende que a composição dos órgãos colegiados, em razão da desproporcionalidade numérica entre alunos, servidores e professores, tende a desfavorecer os estudantes.

Os temas abordados pelo CTA ressurgiram na reunião da Congregação, o maior colegiado deliberativo das unidades de ensino da USP, no dia 27 de abril. Segundo relato do CALC, o docente Martin Grossmann teria incluído, sem aviso prévio, uma moção de suspensão das QiBs na ordem do dia. Em sua fala, Martin cobrou uma postura mais enérgica da diretoria da unidade, uma vez que as festas às quintas estariam atrapalhando a condução das aulas durante o período noturno. 

Apesar do assunto ser de competência do CTA e do “GT da prainha”, por 12 votos favoráveis a 11 contrários, a Congregação aprovou o indicativo de suspensão das festas. O tema agora deve retornar ao Conselho Técnico-Administrativo da unidade, que se reunirá novamente na primeira quinzena de junho, quando poderá trazer uma decisão final sobre a questão.

A velha e a nova vivência: o projeto CRIATECA

“Queremos fazer a reforma do teto da vivência. Na salinha da atlética, pinga tudo quando chove ali”, indica Primo. A falta de vedação do teto é só um dos problemas que o prédio da vivência, contíguo à prainha, enfrenta nos dias atuais. A falta de água saindo nas pias e nos sanitários não é um cenário raro e, durante as quintas-feiras, é propositalmente causado para inibir as confraternizações dos estudantes. Na fachada e dentro do prédio, teias de aranha aparecem aos montes e cobrem algumas das lâmpadas.  

As carências também não são novidade para Monyca. Proprietária da cantina instalada no local desde 2014, a corretora de imóveis aposentada relata que investiu cerca de R$50 mil reais na adequação do restaurante, que até então enfrentava problemas com a vigilância sanitária do campus. De lá para cá, Monyca resistiu — “por isso o Dona Lêoa’”, brinca a empresária — a diversas tentativas de expulsão por parte da direção da ECA e até mesmo da Reitoria. A USP chegou a entrar duas vezes com ordens de despejo em 2016, porém a decisão não foi referendada pela justiça.

A dona da cantina, contudo, diz ter muitas dúvidas se conseguirá permanecer muito tempo: com o cenário inflacionário, tem ficado cada vez mais difícil manter os custos do empreendimento. No entanto, para além das despesas elevadas, são as modificações previstas pelo novo projeto de reestruturação da vivência que podem acabar tirando Monyca do local. 

O projeto desenvolvido pela Superintendência do Espaço Físico (SEF) da USP é defendido pela gestão da ECA como uma solução duradoura para os problemas de infraestrutura da vivência e se encontra em fase de finalização do projeto executivo. Nele, há previsto a criação de salas de estudo, ilhas de edição, um auditório de 144 lugares, ampliação do espaço de convivência junto à uma área externa com mesas e cadeiras e acomodação de todas as entidades estudantis da ECA.

Reprodução de desenhos e detalhe da planta do projeto executivo do edifício CRIATECA, em fase final. Foto: Projeto executivo – CRIATECA.

Segundo a diretora, a previsão é que a SEF contrate ainda no segundo semestre deste ano a empresa responsável pelas obras que devem durar “longos prazos”, indica a diretora Brasilina. A docente acredita que com a proximidade da obra no segundo semestre, haverá espaço para “apresentação dos benefícios que a obra trará para os atuais e futuros estudantes da ECA”, conclui.

O projeto de requalificação do espaço não preocupa só a Monyca. Os estudantes do CALC temem que o novo projeto retire a gestão da vivência da esfera dos estudantes. “Em troca da reforma, entendemos que a vivência perderá o caráter autônomo do espaço estudantil. As chaves do prédio permanecerão com a diretoria e eles vão poder abrir e fechar quando quiserem”, opina Primo. As obras devem começar já em 2023 e não está claro ainda qual será o impacto delas para a realização de confraternizações estudantis, ou para onde serão transferidas as entidades enquanto as obras durarem. O projeto executivo do CRIATECA está disponível no site da ECA.

O projeto já fora objeto de matéria do Jornal do Campus em 2019.

Estudantes promovem oficina de cartaz em protesto às decisões do CTA e da Congregação. Foto: Guilherme Gama/JC

Uma prainha sem grades?

Não é possível frequentar a prainha sem perceber as grades que a cercam em três dos quatro lados de sua área. E se para as gerações mais novas tais barreiras possam parecer integradas à paisagem, para a comunidade mais antiga de alunos e docentes, elas permanecem como eternas intrusas. “A instalação das grades foi uma deliberação unilateral da Reitoria da USP, sem nenhuma participação da ECA”, relembra a diretora Brasilina Passarelli. 

De supetão, após o término do semestre letivo nos dias finais de dezembro de 2016, a intervenção custeada pela gestão do reitor Marco Antônio Zago (2014-2017) ocorreu sob a alegação de falta de segurança do local, compreendida por assaltos, furtos, agressões e comércio ilegal  – um quadro convergente com o mencionado pelo relatório do GT da prainha. No auge da crise fiscal da universidade, a obra foi criticada pelo seu alto custo e não trouxe uma solução efetiva para enfrentar as questões abordadas, como mostra o diagnóstico do GT: “essa providência não nos ajudou a resolver o problema, mas em decorrência da grade, novos riscos surgiram”. 

Desde a sua colocação, o único acesso da prainha possível se dá pela portaria do Prédio Central, dado que os portões que ficam nas grades estão permanentemente fechados. Para alguns membros docentes, permitir o acesso somente pelo saguão do Prédio representa um risco de segurança, à medida que pode ali se formar um gargalo de fluxo de pessoas dada a ocorrência de incêndios, por exemplo, dentro da prainha.

A avaliação dos membros do movimento estudantil, dos sindicatos dos professores (Adusp) e dos funcionários (Sintusp) é que as grades trouxeram um obstáculo grave e autoritário ao uso comum de uma área da universidade pública. A colocação das grades coincide com o mesmo período de despejo da sede do Sintusp do prédio da vivência.

Perguntada sobre a possibilidade da retirada das grades, a atual diretora da ECA comenta: “acreditamos sim que é possível negociar a retirada das grades [junto à Reitoria] se conseguirmos apresentar uma proposta de uso do espaço da prainha de uma forma segura para todas as pessoas, e dentro das normas da Universidade.” 

“O uso seguro” a que se refere a diretora, segundo o documento do GT, passa pelas assinaturas por parte das representações estudantis dos Termos de Conduta e de Concessão do Espaço. A diretoria também fala em instalar mais câmeras no espaço e manter as restrições de acesso para bebidas alcóolicas e ambulantes pelo Prédio Central. 


Confira, na íntegra, a entrevista com a Professora Brasilina Passarelli, atual diretora da Escola de Comunicações e Artes, clicando aqui.