Projetos de lei municipais querem coibir artistas de se manifestarem

O posicionamento eleitoral  em apresentações públicas podem estar com os dias contados

por Ivan Conterno e Guilherme Caldas 

Projetos de lei municipais querem coibir artistas de se manifestarem

Ao longo dos anos, a virada cultural tem reunido milhares de pessoas nas ruas de São Paulo. Foto: PMSP 

A cantora Ludmilla fez um show no dia 28 de maio, durante a Virada Cultural, evento promovido pela prefeitura de São Paulo. Em determinado momento, a artista fez um sinal de “L” com a mão. Incomodado, o vereador Fernando Holiday, do Partido Novo, pediu na Justiça a suspensão do cachê de R$ 222 mil pago à cantora, alegando que o “L” com os dedos era “símbolo atrelado ao pré-candidato à presidência Luís Inácio Lula da Silva” e que o telão representava “as cores do Partido dos Trabalhadores”.

Dois meses antes, no dia 28 de março, uma decisão do ministro Raul Araújo, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que proibia manifestações políticas no festival Lollapalooza foi duramente criticada por comentaristas e pelos próprios artistas que se apresentaram. A ação foi movida a pedido do Partido Liberal (PL), do presidente Jair Bolsonaro, após a cantora Pabllo Vittar levantar uma bandeira do pré-candidato à presidência Lula. No dia seguinte à decisão, o mesmo ministro aceitou o pedido de arquivamento da ação, revogando a liminar que estabeleceria a censura prévia ao evento.

Em ambos os casos, as ações se basearam na Lei 11.300 de 2006, que proíbe a promoção de candidatos, comícios e reuniões eleitorais nas apresentações artísticas. Em julho de 2018, o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB) ajuizaram ação contra essa regra no Supremo Tribunal Federal. Segundo esses partidos, a proibição nos casos em que os artistas não fossem remunerados seria incompatível com a garantia da liberdade de expressão. Em outubro do mesmo ano, o plenário decidiu manter a regra por 7 votos a 3. O relator, ministro Dias Toffoli, no entanto, acrescentou à decisão que a proibição de showmícios cria “impedimento para que um artista manifeste seu posicionamento político em seus shows ou em suas apresentações.”

Mais recentemente, o projeto de lei 376.2022, protocolado na Câmara Municipal de São Paulo, segue a mesma linha da devolução do cachê de Ludmilla que Fernando Holiday pleiteou na justiça, mas busca instituir como regra que artistas não recebam cachê em caso de manifestação política em eventos custeados pelo Estado.

De autoria do vereador Rubinho Nunes (União Brasil) e do Movimento Brasil Livre (MBL), a proposta aponta a necessidade de se “impedir que eventos e shows pagos com o dinheiro público (…) se destinem a financiar campanhas políticas de forma indireta”. De acordo com a justificativa do projeto, ainda, declarações políticas em palcos montados com dinheiro dos contribuintes constituem uma “imoralidade”, já que, para o vereador, se assemelhariam aos showmícios, em que artistas se apresentavam em eventos de campanha de candidatos a cargos públicos, e que são hoje proibidos pela Justiça Eleitoral.

Em declaração ao Jornal do Campus, o vereador Rubinho Nunes diz que o seu projeto “é fundamental para que o dinheiro público seja respeitado”. Ele ainda afirma que “o cidadão comum não pode ser obrigado a financiar campanhas ilegais de milicianos e ex-presidiários.”

Projetos de lei municipais querem coibir artistas de se manifestarem

O vereador Rubinho Nunes, autor do projeto de lei. Foto: MBL

Protocolado oficialmente na Câmara em 17 de junho, o projeto ainda não tem previsão de data para ser debatido no plenário da casa. Além da suspensão de pagamentos para os artistas, o projeto inicial prevê também uma multa de 50% do valor contratado. O jornal Folha de S. Paulo apurou que o MBL tem planos para que projetos semelhantes também sejam registrados nas câmaras municipais de Santo André, São Bernardo do Campo, Sorocaba e Valinhos.

OCaso Ludmilla

Logo após solicitar a suspensão do pagamento do cachê de Ludmilla pela prefeitura, Fernando Holiday foi respondido no Twitter pela cantora: “Ô Fernando Holiday, deixa eu contar um segredo: meu nome também começa com a letra L!”

O vereador a confrontou novamente, mencionando a postagem de Ludmilla: “Toma vergonha na sua cara! Nunca fez “L” nos seus shows. O povo paulistano não é idiota. A única vez que fez foi em contexto de campanha. Se quiser fazer campanha para bandido, faça com o seu dinheiro!”

Alguns fãs corroboraram a justificativa da artista, republicando apresentações de dois ou três anos antes nas quais ela também levantava o dedo em forma de “L de Ludmilla” em determinado momento do espetáculo.

O processo corre na 15ª Vara da Fazenda Pública e ainda não foi julgado. A cantora fez outra apresentação pública durante a Parada do Orgulho LGBT+, no último dia 19, dessa vez sem criar novas polêmicas.
 Implicações
 

No dia 6 de outubro de 2021, um dia antes do julgamento da ação que buscava permitir os showmícios voluntários, o jornalista Rodrigo Haidar afirmou em seu programa na Band News que a legislação eleitoral brasileira “é uma das mais proibitivas do planeta”, com o objetivo de proteger o eleitor de ser ludibriado, sendo a proibição dos showmícios uma forma de censura prévia.

No caso dos artistas, a criatividade sempre abre espaço para formas de manifestação que burlem as regras estabelecidas. Durante as apresentações no Lollapalooza, quando ainda vigorava a censura do TSE, o cantor Marcelo D2 do grupo Planet Hemp resolveu enfrentar a medida exaltando o nome do festival: “Olê, olê, olê, olá! Lolla, Lolla!”. Assim como ele, os demais artistas que se apresentaram ao longo do dia também se posicionaram politicamente das mais diversas formas.

O projeto de lei do MBL causa ainda mais temor e insegurança, dado que os artistas estariam sujeitos não só à anulação do pagamento como do pagamento de multa de no mínimo R$ 10 mil. Uma vez que os custos da produção cultural não seriam repostos, o prejuízo para a classe artística é ainda maior que o valor da multa.